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terça-feira, 22 de novembro de 2011

Os novos soldados do capitalismo



Na madrugada de terça-feira, durante o assalto ao acampamento do Occupy Wall Street, a polícia de Nova York adotou métodos primitivos. A entrada da imprensa na área da operação polícial foi vetada. Ydanis Rodriguez, um membro do parlamento local, foi agredido e preso, quando tentava encontrar-se com os manifestantes. Houve mais de 200 prisões, uso generalizado de gás pimenta e golpes de cassetete. Uma biblioteca de 5 mil livros foi atirada a um contêiner de lixo.

Mas estas cenas de brutalidade são apenas um aspecto menor da operação. Notícias publicadas ontem (15/11) nos jornais norte-americanos, e análises de mais fôlego na imprensa alternativa, revelam algo mais grave. Articulou-se nas últimas semanas, nos Estados Unidos, um esforço policial coordenado, com objetivo de suprimir um movimento que, embora tenha sempre agido de modo pacífico, passou a ser encarado como uma ameaça ao status quo. A investida contra o Occupy reflete a militarização das forças de segurança dos EUA, cada vez mais voltadas a identificar e combater “inimigos internos” — e equipadas com sofisticado armamento “high-tech” contra eles.

Embora a decisão de desocupar praças caiba, institucionalmente, aos prefeitos, a ação policial está sendo tramada nacionalmente. Mais de 40 chefes de polícia das cidades em que o Occupy montou acampamentos mantiveram reuniões constantes nas últimas semanas, muitas vezes por meio de videoconferências. O objetivo dos encontros foi trocar informações sobre as formas mais eficazes de promover a desocupação. Pretende-se evitar, sobretudo, episódios constrangedores para as forças da ordem, nos quais a resistência pacífica as obriga a recuar.

O planejamento foi especialmente meticuloso contra o Occupy Wall Street, revelou o New York Times. Houve duas semanas de treinamento, mas os policiais envolvidos não foram informados, em nenhum momento, sobre o alvo e as circunstâncias de sua futura ação. Temia-se a mobilização social. Uma tentativa anterior de esvaziar o acampamento, em 14 de outubro, fracassou porque, informados previamente, os manifestantes conseguiram convocar apoio.

O último treinamento foi feito na noite de segunda-feira, 14/11. Mesmo então, segundo o jornal, não se mencionou o Zucotti Park — ou Praça da Liberdade, como foi rebatizada pelos acampados. Na convocação dos policiais falou-se apenas em “um exercício”. A decisão de atacar o Occupy foi comunicada “apenas no último momento”.

Centenas de agentes foram mobilizados. O momento da operação foi escolhido meticulosamente. Sabia-se, depois de semanas de observação, que na madrugada de segunda para terça-feira o acampamento estaria mais vazio. O parque foi isolado por barreiras de policiais armados com escudos. No momento da desocupação, não era permitido aproximar-se a menos de cem metros do local. Os jornalistas que já estavam na área foram retirados: a polícia alegou que desejava proteger sua “segurança”.

Que leva a polícia de um país que se orgulha de respeitar as liberdades civis a se voltar para a repressão contra protestos pacíficos? Num texto publicado também ontem, no siteAlternet, Heather “Digby” Parton, uma blogueira norte-americana premiada pela profundidade de suas análises (publicadas costumeiramente em Hullabaloo), procura as respostas. Ela as encontra, principalmente, no que vê como três décadas de militarização das forças policiais norte-americanas. Primeiro, para enfrentar a chamada “guerra contra as drogas”; mais tarde (a partir do 11 de setembro), para a vigilância interna, adotada a pretexto da “guerra contra o terror”.

Desde 1980, reporta “Digby”, a polícia norte-americana tem sido preparada para assumir um número crescente de atividades de caráter mais tipicamente militar. Esta mudança se expressa em aspectos como o armamento e os uniformes policiais. Equipamentos como os fuzis M-16 e veículos blindados tornaram-se comuns – inclusive em unidades instaladas nos campi universitários.

A partir de 2001, esta tendência assumiu nova dimensão. As forças policiais foram envolvidas na vasta operação do governo Bush para ampliar a vigilância sobre os cidadãos. A lei “Patriot Act”, até hoje em vigor, permitiu violar o sigilo de comunicação e rastrear as operações financeiras. Criado na época, o Departamento de Segurança Interior (Department of Homeland Security) passou a coordenar as ações de espionagem interna. Tornou-se, rapidamente, a terceira maior agência estatal dos EUA. Tem orçamento anual de 55 bilhões de dólares. Horas após o ataque contra Occupy Wall Street, o cineasta Michael Moore lançava, pelo Twitter, uma questão ainda não respondida: terá o departamento participado da operação contra os manifestantes?

Ainda mais importante, introduziu o conceito de “terrorismo doméstico”, orientando as forças da ordem não apenas contra os crimes tradicionais — mas contra um leque amplo e impreciso de atividades, que pode facilmente incluir a oposição política. As consequências foram explicitadas em 2006 por Joseph McNamara, ex-chefe de polícia de San Jose. Ele afirmou que o novo cenário havia produzido “uma ênfase em treinamento paramilitar, que, em contraste com a antiga cultura, sobrepõe-se ao treinamento policial — segundo o qual os policiais não deveriam atirar, exceto para se defender”.

Um dos aspectos mais controversos da nova postura foi a utilização costumeira de armas consideradas “menos-letais”. Digby conta que os teasers (que produzem choques elétricos e podem, em certas circunstâncias, matar) são apenas a ponta de iceberg de um vasto arsenal — utilizado, por enquanto, apenas em situações de treinamento. Ele é inteiramente voltado para a dispersão de protestos. Inclui, por exemplo, o ray gun. Posicionado no alto de um veículo e disparado contra uma manifestação, ele produz, nos que estão à frente, a sensação de um “soco invisível”, que provoca intensa dor e impede de continuar caminhando. Sintomaticamente, foi testado, em exercícios na Geórgia, contra soldados vestidos de manifestantes que portavam cartazes com dizeres como “Paz Mundial”, “Amor para todos” e “Paz, guerra não!”.

Ainda mais espantosos são os planos para desenvolver armas como teasers com alcance de cem metros ou, mesmo, aviões não-tripulados (“drones”) capazes de criar grandes “áreas de exclusão” ao bombardeá-las com dardos virtuais que produzem choques elétricos. (Para descrição das armas, Digby baseou-se numa extensa reportagem de Ando Arike, publicada na revista Harper’s e disponível aqui, em versão pdf).

Ao final de seu texto, Digby debate uma questão política crucial. A militarização da polícia foi impulsionada no período imediatamente posterior aos ataques de 11 de Setembro. Na época, o choque provocado pelo terror e a onda de patriotismo que se seguiu garantiram amplo consenso social em favor das medidas de vigilância. O secretário de Defesa (e depois vice-presidente) Dick Cheney chegou a afirmar que “o Estado precisa tirar suas luvas”.

Este tempo passou. Numa época em que o terrorismo deixou de ser uma ameaça visível e crescem, em contrapartida, os protestos contra a desigualdade, o desemprego e o esvaziamento da democracia, qual será a conduta das forças policiais agora orientadas também contra alvos que podem incluir a dissidência civil, e dotadas de novo armamento? Como elas agirão, se os novos movimentos recusarem-se a receber ordens — que julgam ilegítimas — para refrear seus protestos?

As respostas estão em aberto. O que ocorreu em Nova York em 15/11 não é uma fatalidade, mas serve de alerta. Se a construção de uma sociedade mais justa inclui manter e ampliar as liberdades civis, então será preciso conhecer em profundidade, denunciar e reverter esta nova ameaça de desconstrução da democracia.

*Antonio Martins é jornalista e editor de Outras Palavras

sábado, 8 de outubro de 2011

REM se despede: o fim de uma grande banda


   'A qualquer pessoa que se sentiu tocada pela nossa música, nossos maiores agradecimentos'. Foi assim que o grupo REM anunciou o término de suas atividades, após 31 anos de carreira. A lacônica despedida postada no dia 21 de setembro no site oficial foi inversamente proporcional à importância que a banda ocupou no cenário do rock nas últimas décadas.

O REM deixa assim os palcos para entrar na história da música. Não só pela qualidade das canções, mas pela integridade de sua carreira. O nome vem de ‘Rapid Eye Movement’, o estágio mais profundo do sono. Surgida na pequena Athens, na Geórgia, mesma cidade de grupos como B-52’s, a banda teve início em 1980 quando o então estudante de arte Michael Stipe se uniu a outros amigos como o baixista Mike Mills, o guitarrista Peter Buck e o baterista Bill Berry a fim de tocar no efervescente circuito universitário da região.

A banda se tornaria marco do que viria a ser conhecido como ‘college rock’, ou simplesmente ‘rock alternativo’, que se proliferava através das estações de rádio dos campi universitários, principalmente dos EUA e Canadá. Influenciados por diferentes estilos como o punk, o pós-punk e o New Wave, esse circuito era a alternativa aos artistas que buscavam liberdade de criação por fora do ‘mainstream’.

O rock direto, em até certo ponto simples e de letras inteligentes que se emolduram perfeitamente na bela voz de Stipe, ganhou notoriedade e respeito nesse meio. As letras do REM sempre foram repletas de críticas, principalmente ao governo. No álbum Document de 1987, por exemplo, a música ‘Exhuming MacCarthy’ (‘Exumando McCarthy’), atacava o presidente Ronald Reagan, envolvido na época com o escândalo dos ‘Irã-contras’, que Stipe na música compara ao mccartismo.

Apesar de já contar nos ano 80 com uma sólida carreira no underground e vários sucessos, foi com ‘The One I Love’ que o grupo assinou um contrato com uma grande gravadora e foi considerada, em 89, a melhor banda de rock dos EUA. No entanto, enquanto alguns grupos vêem sua criatividade escorregar enquanto escalam a montanha da fama, deixando-se levar pela pressão comercial e formatação imposta pelas grandes gravadoras, o REM parecia imune a isso.



Em 1991, lançam o que seriam seu mais conhecido álbum, o ‘Out of the time’, com seu maior sucesso, ‘Losing my religion’. Numa época em que proliferavam os ‘clipes’, insuflados pela MTV, o vídeo da música se tornou um dos mais conhecidos da história. ‘Losing my religion’ é uma expressão típica do sul dos EUA, que significa ‘perder a paciência’, ‘ficar no limite’ e, segundo Stipe, se refere a um amor não correspondido, uma obsessão.

Apesar disso, o vídeo da música com versos como “That's me in the corner/That's me in the spotlight/Losing my religion” “Aquele sou eu no canto/Aquele sou eu na luz/Perdendo minha religião” chegou a ser proibido em alguns países. O diretor do vídeo, o indiano Tarsem Singh, inspirou-se em pintores como Caravaggio, o próprio Michelangelo e em diretores como Tarkovsky para criar uma verdadeira obra-prima.

Outro sucesso do mesmo álbum foi o ‘alegre’ ‘Shiny Happy People’, canção gravada com a vocalista do B-52’s e de tom marcadamente irônico que, segundo alguns, faz referência ao massacre da Praça da Paz Celestial ocorrido dois anos antes. Já no ano seguinte o grupo lança o Automatic for the People, com músicas como ‘Man on the Moon’ e a bela e triste ‘Everybody Hurts’, cujo vídeo é outro primor, mostrando que é possível perfeitamente conciliar uma boa canção pop a um ‘vídeo clipe’ elaborado.

Mesmo que no esquema das grandes gravadoras, o REM atravessou a década de 1990 quase como uma ilha de originalidade em meio ao mar de mediocridade que dominou o cenário do rock no período, excetuando o efêmero fenômeno grunge de Seattle. Não por acaso, Kurt Cobain era fã declarado da banda de Stipe. E assim seguiu por toda a década seguinte, o grupo agora já transfigurado em baluarte do rock.

Michael Stipe, em 2008, fez questão de assumir plenamente sua homossexualidade. Disse que antes não entendia no que isso fosse interferir na vida das outras pessoas, mas depois percebeu que o ato poderia ajudar as outras pessoas na mesma situação e na luta contra a homofobia.

Na justificativa para o derradeiro comunicado oficial da banda, Stipe afirmou que um sábio sabe a hora de se retirar de uma festa. O REM, assim, sai de forma digna da história da música pela porta da frente, ao contrário de outros grupos que vêem na atividade um mero caixa eletrônico para sacar dinheiro a cada dois ou três anos. Mostrou que a massificação imposta pela grande indústria fonográfica não é capaz de acabar com a inteligência e a originalidade de belas canções.

Sem mistificações, foi uma grande banda e que fará falta. Principalmente aos milhões de pessoas que ‘se sentiram tocadas’ por suas músicas nas últimas três décadas.

Fonte: http://www.pstu.org.br/cultura_materia.asp?id=13389&ida=20

sexta-feira, 16 de setembro de 2011




Carta aos jovens brasileiros

*Plínio Sampaio


Pediu-me um dos seguidores do meu twitter que escrevesse uma carta dirigida aos brasileiros jovens.
Não me sentiria autorizado a fazê-lo, se não estivesse recebendo tantas manifestações de apoio como tenho recebido desde a campanha eleitoral.


Propostas tão mal recebidas pelas pessoas maduras, foram acolhidas com entusiasmo pelos jovens e pelas pessoas idosas.


Curiosa esta fissura entre a juventude e a velhice e as pessoas que estão no comando do país. Demonstração evidente de que os dirigentes não o estão conduzindo corretamente e prenúncio de importantes modificações políticas.


O que posso dizer a vocês, jovens, em retribuição ao apoio que me têm dado?
Penso que devo apenas repetir o que falei nos debates: ninguém consegue ser feliz em uma sociedade tão desigual como a nossa.


A solução para essa desgraça é uma só: substituição do poder burguês pelo poder popular. Isto se chama: socialismo.


O jovem vive um período de formação.


Sua maior contribuição para o socialismo, nesse período, é o estudo da nossa realidade e da teoria marxista.
Estudo não quer dizer apenas leitura de livros. Exige igualmente experiência, ação, participação nos assuntos importantes da sociedade.


É isto que gostaria de pedir a vocês. Cuidem da sua formação intelectual, porque o Brasil precisa de gente preparada, mas cuidem igualmente da formação que se obtém na prática, na ação.


Coloco-me inteiramente à disposição da juventude brasileira, para colaborar na construção de uma sociedade igualitária, justa e democrática – uma sociedade socialista.


Vamos, juntos, revolucionar este país!



*Plínio de Arruda Sampaio divulgou este texto em 9 de fevereiro de 2011. A pedidos o reproduzimos.


domingo, 4 de setembro de 2011

O Socialismo é possível, necessário e urgente!


O Socialismo é possível, necessário e urgente!

*Por Afrânio Boppré


O Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) é um partido de esquerda que nasce como necessidade de responder à crise que a esquerda brasileira vive. Sua existência não resultou apenas disso, mas tem aí uma motivação decisiva. A crise que nos referimos reside principalmente no fato de setores importantes da “esquerda” ter efetuado um radical transformismo político. A contestação intransigente ao capitalismo (o que deve caracterizar qualquer partido de esquerda) foi abandonada, cedendo lugar a uma posição de edulcorar a prática política de modo a se tornarem palatáveis aos interesses da classe dominante. No Brasil houve uma conversão, na medida em que esses setores que ameaçavam o sistema político e econômico em uma perspectiva pró-trabalhadores assumiram a função de garantidores da estabilização pró-classe dominante. Esse giro foi conduzido com muito cuidado de modo a não haver desidratação eleitoral. Perdeu-se a simpatia de setores organizados da classe trabalhadora, no entanto, compensado com políticas assistencialistas para outros setores. O pior: criou-se a falsa idéia de que este é o limite e como se tivéssemos chegado ao ótimo possível. O PSOL nasce a partir dessa circunstância e com a missão de quebrantá-la e recompor a idéia de que o socialismo não só é possível, como é necessário e urgente.


Numa conjuntura onde professores, bombeiros, técnicos administrativos das universidades federais, trabalhadores da Usina Hidrelétrica de Jirau em Rondônia dentre outros milhares de brasileiros apontam o caminho da luta como forma de responder a situação de precariedade de suas vidas, temos um governo respondendo por ajustes econômicos, para salvaguardar o pagamento da dívida pública na ordem de R$ 635 bilhões anuais, o que representa 44,93% do orçamento da União de 2010. Por outro lado esses dados da Auditoria Cidadã da Dívida acusam que somente 2,89% são destinados a Educação e 3,91% a Saúde.


Para o PSOL é urgente alterar a política econômica. A pauta brasileira não pode ser a de insistir com privatizações a exemplo dos aeroportos; de megaeventos com licitações secretas para favorecer a pilhagem; já temos sete meses de governo Dilma e aumentamos a taxa de juros cinco vezes alcançando 12,5% a.a. – a mais alta do mundo em termos reais. Dilma anunciou corte de R$ 50 bilhões no orçamento da União de 2011 com impacto direto para pessoal na ordem de R$ 3,5 bilhões; congelamento de salários; cortes no Ministério da Reforma Agrária na casa de R$ 1 bilhão.
Nosso “novo” governo está também minado por ardilosa estratégia fisiológica e corrupta. Postos chaves da república desmoronam em meio a escândalos de corrupção diários. Nossas florestas estão ameaçadas pela tramitação no congresso nacional do Código Florestal, que na prática é uma licença para desmatar e atender os interesses do agronegócio. Belo Monte figura como padrão não sustentável de desenvolvimento.
Estes aspectos são suficientes para o PSOL não aceitar os princípios programáticos do governo brasileiro em curso e se definir como oposição de esquerda e programática, sem contudo, deixar de se opor também firmemente aos partidos tradicionais da oposição de direita e conservadora que se opõem no varejo ao governo do PT/PMDB mas guardam grande afinidade no atacado.


O PSOL propugna em favor do ecossocialismo. No entanto, não concluímos que há na história um movimento direcional-linear em seu favor. A formação social capitalista produz contradições que abrem brechas para sua própria negação mas, por sua vez, sua superação exige um sujeito social forte e disposto a por um fim ao impasse histórico em que a humanidade vive. Impasse esse de múltiplas dimensões: econômica, ecológica, social, financeira, bélica, política e moral.


O capitalismo mesmo que cambaleante não ruirá por si mesmo. Nada nos garante que no bojo de suas crises iremos encontrar a oportunidade de sua superação. Partimos do pressuposto então, de que o capitalismo terá de ser derrubado e ninguém o fará sem ter o que colocar em seu lugar. Neste sentido, o socialismo deve ser visto como superação ao modo de produção capitalista. A estratégia para tal intento deve ser processual e obra de milhões de brasileiros e brasileiras. O PSOL se reivindica integrante desse sujeito histórico e está disposto a acumular forças e perseverar na construção de uma sociedade pós-capitalista. Atuaremos com os movimentos sociais, propugnando a auto-organização popular das classes trabalhadoras, sem o qual é impossível pensar em superação do capitalismo. 


Atuaremos pela via institucional com esta coerência. Basta ver que nossa bancada de deputados federais, estaduais e senadores dignifica os valores programáticos, éticos e ideológicos partidários socialistas.
Entendemos que a concepção partidária está relacionada com a formação econômico-social brasileira. Não há como conceber um partido sem considerar a situação e o momento histórico em que está inserido. Sendo assim, o PSOL quer se consolidar como partido amplo, plural, profundamente democrático e militante.


O PSOL é a um só tempo meio e fim. Meio porque se predispõe a ser instrumento a serviço dos explorados e oprimidos, instrumento para combater a homofobia, o racismo e o sexismo por exemplo, instrumento em favor da redução da jornada de trabalho para 40 horas semanais, em favor da reforma política com financiamento público exclusivo de campanhas eleitorais, da educação pública de qualidade, de fortalecimento de políticas públicas para a saúde e mobilidade. O PSOL é meio porque opera como instrumento para a sociedade alcançar determinados objetivos, mas é também um fim, isto é: precisa ser construído, precisa de permanentes atualizações, de cuidado consigo mesmo para seu pleno funcionamento democrático e libertário. Sendo assim, jamais será obra acabada e está em permanente processo de construção. Consideramos que a “forma” partido não é dicotômica com a “forma” movimentos sociais. Por isso, não concordamos com a apressada conclusão de determinados (as) companheiros (as) que diante do sentimento de perda desistiram da estratégica tarefa de edificar um partido em favor da classe trabalhadora e caíram ou no movimentismo ou vestiram o pijama mediante gigantesca desilusão com o PT. Neste sentido o PSOL se dispõe a ser um aconchegante abrigo para a esquerda brasileira. E por isso afirmamos o PSOL como sendo um novo partido socialista em favor de uma nova política, essencialmente anticapitalista e radical na defesa dos direitos e interesses das classes trabalhadores e de todas as camadas e setores oprimidos na sociedade. Em síntese, para estes tempos de novos desafios após o transformismo político do que hoje já é uma velha esquerda, acomodada as benesses do estado, o PSOL é um partido indispensável e necessário!

*Afrânio Boppré é economista, professor e secretário geral do PSOL Nacional

domingo, 14 de agosto de 2011

Maria da Conceição Tavares analisa a crise econômica mundial


“Não, não é um quadro com o de 1929. Aquele teve um ápice, com recidivas, mas ensejou um desdobramento político que inauguraria um outro ciclo, com Roosevelt e o New Deal. O que passamos agora é distinto de tudo isso”, diz a economista Maria da Conceição Tavares, em entrevista à Carta Maior.
Por Saul Leblon


As manifestações mórbidas de ortodoxia fiscal nos EUA e, antes, o martírio inútil da Grécia, mas também as rebeliões de indignação que tomam as ruas do mundo, em contraste com o alarme sangrento da intolerância neonazista vindo da Noruega, romperam uma blindagem de opacidade e resignação que revestia a crise mundial.

Depois de anos de abordagem asséptica por parte dos governos, e do tratamento complacente e obsequioso desfrutado na mídia, causas e conseqüências da débâcle mais ruidosa do capitalismo desde 1929 adquirem progressiva transparência.

Arcado sob um vácuo de liderança assustador, os EUA de Obama e do Tea Party, mas também a Europa da rendição socialdemocrata, expõem a dimensão política da crise, que realimenta seu impasse econômico.

Nos confrontos de rua entre uma população desesperada e um poder político de representatividade dissolvente, desnuda-se a brutal incompatibilidade entre os mercados financeiros desregulados e os valores da democracia. Na ascendência do Tea Party, pautando um arrocho ortodoxo que joga o planeta às portas de uma Depressão, desaba a confiabilidade na democracia norte-americana que se transforma em fator de insegurança mundial.

A conversa fiada dos centuriões midiáticos que durante o ciclo neoliberal venderam o peixe podre, segundo o qual, democracia e laissez-faire selvagem são personas indissociáveis do capitalismo desregulado, derreteu. Da poça de desilusão escorre um veio de discernimento que se espalha aos poucos pelas praças do mundo: a crise só será efetivamente superada com uma democracia reinventada pela participação popular.

O movimento não se completa, todavia, apesar da truculência incomum, porque a explosão carece, ainda, daqueles atores dos quais se espera , historicamente, a expressão organizada e programática do conflito social: os partidos políticos, mais especificamente, as legendas alinhadas ao campo da esquerda.

Tal vazio afirma a natureza verdadeiramente sistêmica da atual crise, cujo atributo não se restringe ao colapso do corpo econômico de uma época. A crise paradoxalmente trouxe a política de volta porque nenhuma solução de mercado resolverá os impasses causados por ele e por seus mitos.

Essa singularidade não passa desapercebida pelos que se debruçam, como sempre se debruçaram, na análise das crises e impasses do sistema capitalista em busca de respostas progressistas para o presente e o futuro do desenvolvimento brasileiro. Entre as mais importantes contribuições desse indispensável engajamento intelectual está a voz da professora Maria da Conceição Tavares.

Em março deste ano, quando Obama se preparava para aterrissar no Brasil, em meio a confetes e serpentinas de uma mídia obsequiosa, a narrativa dominante saltitava ao som de um novo samba enredo.

Um esforço coreográfico enorme procurava convencer o distinto público sobre a veracidade de algumas fantasias e adereços. A saber: a viagem era um ponto de ruptura entre a ‘política externa de esquerda’ do Itamaraty – leia-se de Lula , Celso Amorim e Samuel Pinheiro Guimarães – e o suposto empenho da Presidenta Dilma em uma reaproximação ‘estratégica’ com o aliado do Norte; a visita selaria um a nova agenda, ‘uma reconciliação’ entre Brasília e Washington ancorada em concessões e acordos expressivos; Obama seria o paradigma de uma modernidade a ser seguida por Dilma, distinta do ‘populismo’ político e econômico da ‘escumalha’ latinoamericana –ele usa twitter, é cool, não gosta de Lula, nem de Chávez.

Em entrevista à Carta Maior algumas horas antes daquela prometida apoteose que, como é sabido, redundou em fiasco, a professora Maria da Conceição Tavares aspergiu certeiras bisnagas de realismo sobre o entrudo inebriado. E avisou: “Obama não tem nada a nos oferecer. Quase nada depende da vontade de Obama, ou dito melhor, a vontade de Obama quase não pesa nas questões cruciais. A sociedade norte-americana encontra-se congelada pelo bloco conservador por cima e por baixo. Os republicanos mandam no Congresso; os bancos tem hegemonia econômica; a tecnocracia do Estado está acuada.”E arrematou: “Obama foi anulado pelo conservadorismo de bordel da direita norte-americana”.

Carta Maior voltou a conversar agora com a economista a quem todos ligam quando o mundo despenca e é preciso saber para que lado ir. E é isso que o mundo está fazendo há dias, metafórica e financeiramente: despencando.

A extrema direita republicana pautou Obama, como Conceição havia antevisto; asfixiou a política fiscal da maior economia do planeta. O anúncio de cortes de gastos públicos da ordem de US$ 2,4 trilhões de dólares sobre um metabolismo econômico combalido, equivale a ordenar aos mercados que imitem o Barão de Munchausen e se ergam pelos próprios cabelos. O Barão de Munchausen era um contador de lorotas. Só a convicção colegial desastrosa do Tea Party no laissez-faire - cujo equivalente nativo é a mídia e seus consultores - pode inspirar-se nas metáforas capilares do velho Barão para pautar os destinos da economia e da sociedade.

Os mercados sabem que a coisa não funciona assim. Investidores e especuladores urbi et orbi farejaram o desastre e se anteciparam fugindo em massa de ações e títulos, candidatos a perder o valor de face na recessão em curso.

Antes de atender Carta Maior, a professora Maria da Conceição já havia recebido telefonemas de Brasília, com a mesma inquieatação: ‘E agora?’.

A decana dos economistas brasileiros entende de crise. Ela nasceu em abril de 1930, poucos meses depois da 5º feira negra de outubro de 1929, quando as bolsas reduziram todo um ciclo a riqueza especulativa a pó e pânico. Em questão de horas.

A voz rouca de quem viveu e estudou todas as demais crises do capitalismo no século 21, vai logo avisando: “Não, não é um quadro com o de 1929. Aquele teve um ápice, com recidivas, mas ensejou um desdobramento político que inauguraria um outro ciclo, com Roosevelt e o New Deal. O que passamos agora é distinto de tudo isso”.

Maria da Conceição faz uma pausa para para advertir em seguida: “Todavia não menos grave e talvez mais angustiante. É um colapso enrustido, arrastado, latejante. Sim, você tem a comprovação empírica do fracasso neoliberal; mas e daí? São eles que estão no comando, ou será o quê esse arrocho fiscal nos EUA enfiado pelo Tea Party na goela do Obama? Vivemos um colapso do neoliberalismo sob o tacão dos ultra-neoliberais: isso é a treva!’ , desabafa a professora que recém passou por uma cirurgia delicada, tenta moderar a voz e a contundência, mas seu nome é Maria da Conceição Tavares. Bem, ela reforça o torque satisfeita com a síntese enunciada e sublinha, inclemente: ‘É a treva!’

A professora de reconhecida bagagem intelectual, respeitada mesmo pelos que divergem de seus pontos de vista, normalmente prefere não avançar na reflexão política e ideológica. Mas neste caso insiste: ‘Não é um fascismo explícito, como se viu na Europa, em 30. Até porque o nazismo, por exemplo – e isso não abona em nada aquela catástrofe genocida, postulava o crescimento com forte indução estatal. O que se tem hoje é o horror de um vazio político de onde emergem as criaturas do Tea Party e coisas assemelhadas na Europa. Não há ruptura na crise, mas sim, permanência e aprofundamento. Será uma crise longa, penosa, desagragdora, mais próxima da Depressão do final do século 19, do que do crack de 1929”.

A seguir, trechos da conversa de Maria da Conceição Tavares com Carta Maior:

Carta Maior - No caso do Brasil, no que esta crise difere da de 2008 que superamos rapidamente? Dá para usar a mesma receita de então?Maria da Conceição Tavares – “É muito difícil (suspira). Primeiro, pela natureza arrastada, enrustida desse longo crepúsculo. Você fica a tomar medidas pontuais. Tenta mitigar a questão do câmbio para evitar a concorrência predatória das importações. Mas tem efeito limitado. Voce aperta os controles aqui, mas o dólar está derretendo lá fora. Está derretendo sob o peso da recessão e do imobilismo político de quem deveria tomar as rédeas da situação. O Brasil não tem como impedir que o dólar derreta no sistema financeiro mundial.

Carta Maior –Isso foi diferente em 2008...
Maria da Conceição Tavares – Em 2008 nós tivemos um efeito oposto; capitais em fuga migraram de várias partes do mundo, de filiais de bancos e multinacionais, para socorrer a quebra das matrizes na Europa e nos EUA. Então o que houve ali foi uma desvalorização cambial; o Real ficou mais fraco. Isso facilitou as coisas pelo lado das exportações e da contenção de importações, ainda que quase tenha levado à breca aqueles que especulavam contra a moeda brasileira, fazendo hedge fictício para ganhar na desvalorização. Mas do ponto de vista macroeconômico foi um quadro mais favorável. Hoje é o inverso.

Carta Maior - As reservas atuais, da ordem de US$ 340 bilhões são um alento?
Maria da Conceição Tavares – Também há diferenças desfavoráveis nas contas externas. As reservas hoje são basicamente formadas pela conta de capitais; não tanto pelo superávit comercial, como era então. Significa que hoje são a contrapartida de algo fluido, capitais que não sabemos exatamente se representam investimento produtivo, de mais longo curso, ou especulação capaz de escapar abruptamente. Sobretudo, tenho receio porque uma parte considerável desse ingresso é dívida privada. Com a anomalia dos juros, os maiores do mundo – a nossa herança maldita - e a oferta barata e abundante de dinheiro lá fora, nossas empresas se endividaram a rodo. Se houver uma reversão do ciclo, se o dólar se valorizar, o descasamento entre um passivo em dólar e receitas em reais, no caso de quem não exporta, ou exporta pouco, será traumático. Essa contabilidade hoje por certo é mais grave do que o passivo em hedge que quase quebrou grandes grupos brasileiros em 2008.

Carta Maior - Então a margem de manobra do governo Dilma é menor?
Maria da Conceição Tavares - (suspira) Estávamos melhor antes. E muito do que fizemos então não dá para fazer agora...

Carta Maior – Mas o governo pode...Maria da Conceição Tavares – O governo Dilma poderá agir de forma distinta e contundente se a crise virar o Rubicão; aí tudo é lícito e possível.

Carta Maior - Por exemplo?Maria da Conceição Tavares - Por exemplo centralizar o câmbio; controlar importações, remessas etc.

Carta Maior – E enquanto isso não ocorre?
Maria da Conceição Tavares - Mas enquanto se arrasta assim, uma crise enrustida, que vai minando, desagregando, sem ser confrontada, fica difícil. Você toma medidas pontuais que se dissolvem.

Carta Maior - Há uma superposição de colapso do neoliberalismo com esfarelamento político que realimenta e reproduz o processo?Maria da Conceição Tavares - Veja, é um colapso empírico da agenda do neoliberalismo. Avulta que a coisa é um desastre e os meus colegas economistas dessa cepa, espero, devem estar conscientes disso. Mas que poder tem os economistas? Nenhum. O poder que conta está nas em outras mãos, a dos responsáveis pela crise. Vivemos um colapso neoliberal sob o tacão dos ultra-neoliberais. Não estamos falando de gente normal, é preciso entender isso. Não são neoliberais comuns. Meu Deus, o que é isso que estão fazendo nos EUA? É a treva! Vivemos um colapso do neoliberalismo sob o tacão dos ultra-neoliberais: isso é a treva! E ela se espalha desagregando, corroendo.

Carta Maior – Devemos nos preparar para uma crise longa?Maria da Conceição Tavares – Sem dúvida. Por conta dessa dimensão autofágica que não enseja um desdobramento político à altura, que inaugure um novo ciclo, como foi com Roosevelt e o New Deal em 1929.

Carta Maior – As bases sociais do New Deal não existem mais nos EUA?
Maria da Conceição Tavares – Não existem mais. Obama é o reflexo disso. É uma liderança intrinsecamente frouxa. Não tem a impulsão trabalhista e progressista que sustentou o New Deal. É frouxo. Seu eleitorado é difuso ah, ótimo, ele se comunica com os eleitores pelo twitter, etc. E aí? É uma força difusa, desorganizada, estruturalmente à margem do poder. Está fora do poder efetivo no Congresso que é da direita, dos ricos, dos grandes bancos e grandes corporações, como vimos agora no desenho do pacote fiscal. Está fora da indústria também que foi para a China. Esse limbo estrutural é o Obama. Ele pode até ser reeleito, tomara que seja. A alternativa é amedrontadora. Mas isso não mudará a sua natureza frouxa.

Carta Maior – Se não existe o componente político que assemelhe essa crise a de 1929, então o que é isso, essa’ treva’ que estamos vivendo?
Maria da Conceição Tavares – (ri) Uma treva é uma treva... O que passamos agora é distinto de tudo o que se viu em 1929...Todavia não menos grave e talvez mais angustiante. É um colapso enrustido, como eu disse. Arrastado, latejante, sob o tacão de forças como essas dos ultra-neoliberais. Tampouco é um fascismo explícito, porém, como se viu na Europa, em 30. Até porque o nazismo, por exemplo, e isso não abona em nada aquela catástrofe genocida, postulava o crescimento com forte indução estatal. O que se tem hoje é o horror; um vazio político de onde emergem essas criaturas dos EUA, e coisas assemelhadas na Europa. Será uma crise longa, penosa, desagregadora, mais próxima da Depressão do final do século 19...

Carta Maior – O declínio de um império, como foi o declínio do poder da Inglaterra no final século 19?Maria da Conceição Tavares –Sim, é um quadro mais próximo daquele. O poder inglês foi sendo contrastado por nações com industrialização mais moderna. Um arranjo com estrutura de integração superior entre a indústria e o capital financeiro e que aos poucos ultrapassaria a hegemonia inglesa. Foi uma quebra, uma inflexão entre o capitalismo concorrencial e o capitalismo monopolista. A Inglaterra que havia sido a ‘fábrica do mundo’ perdeu o posto para o agigantamento fabril americano e alemão. Isso se arrastou por décadas. Foi uma Depressão, a primeira Depressão que tivemos no capitalismo (durou de 1873 a 1918). Levou à Primeira Guerra, que resultou na Segunda...

Carta Maior – Os EUA são a Inglaterra da nossa longa crise... E o novo hegemon?
Maria da Conceição Tavares - As forças que se articularam na sociedade norte-americana, basicamente forças conservadoras, de um reacionarismo profundo, não em condições de produzir uma nova hegemonia propositiva. Claro, eles tem as armas de guerneora. Não é pouco, como temos visto. Vão se impor assim por mais tempo. Mas daí não sai um novohegemon. Vamos caminhar para um poder multilateral, negociado, sujeito a contrapesos que nos livrarão de coisas desse tipo, como a ascendência do Tea Party nos EUA. Uma minoria que irradia a treva para o mundo.

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

WikiLeaks mostra mídia brasileira a serviço do USA


Hugo R C Souza




Novos documentos vazados pela organização WikiLeaks trazem à tona detalhes e provas da estreita relação do USA com o monopólio dos meios de comunicação no Brasil semicolonial. Um despacho diplomático de 2005, por exemplo, assinado pelo então cônsul de São Paulo, Patrick Dennis Duddy, narra o encontro em Porto Alegre do então embaixador John Danilovich com representantes do grupo RBS, descrito como "o maior grupo regional de comunicação da América Latina", ligado às organizações Globo.

O encontro é descrito como "um almoço 'off the record' [cujo teor da conversa não pode ser divulgado], e uma nota complementar do despacho diz: "Nós temos tradicionalmente tido acesso e relações excelentes com o grupo".

Outro despacho diplomático datado de 2005 descreve um encontro entre Danilovich e Abraham Goldstein, líder judeu de São Paulo, no qual a conversa girou em torno de uma campanha de imprensa pró-sionista no monopólio da imprensa no Brasil que antecedesse a Cúpula América do Sul-Países Árabes daquele ano, no que o jornalão O Estado de S.Paulo se prontificou a ajudar, prometendo uma cobertura "positiva" para Israel.

Os documentos revelados pelo WikiLeaks mostram ainda que nomes proeminentes do monopólio da imprensa são sistematicamente convocados por diplomatas ianques para lhes passar informações sobre a política partidária e o cenário econômico da semicolônia ou para ouvir recomendações.

Um deles é o jornalista William Waack, apresentador de telejornais e de programas de entrevistas das Organizações Globo. Os despachos diplomáticos enviados a Washington pelas representações consulares ianques no Brasil citam três encontros de Waack com emissários da administração do USA. O primeiro deles foi em abril de 2008 (junto com outros jornalistas) com o almirante Philip Cullom, que estava no Brasil para acompanhar exercícios conjuntos entre as marinhas do USA, do Brasil e da Argentina.



O IMPÉRIO REQUISITA O PIAUÍ

O segundo encontro aconteceu em 2009, quando Waack foi chamado para dar informações sobre as conformações das facções partidárias visando o processo eleitoral de 2010. O terceiro foi em 2010, com o atual embaixador ianque, Thomas Shannon, quando o jornalista novamente abasteceu os ianques com informações detalhadas sobre os então candidatos a gerente da semicolônia Brasil.

Outro nome proeminente muito requisitado pelos ianques é do jornalista Carlos Eduardo Lins da Silva, d'A Folha de S.Paulo. Os documentos revelados pelo WikiLeaks dão conta de quatro participações do jornalista (ou "ex-jornalista e consultor político", como é descrito) em reuniões de brasileiros com representantes da administração ianque: um membro do Departamento de Estado, um senador, o cônsul-geral no Brasil e um secretário para assuntos do hemisfério ocidental. Na pauta, o repasse de informações sobre os partidos eleitoreiros no Brasil e sobre a exploração de petróleo na camada pré-sal.

Fernando Rodrigues, repórter especial de política da Folha de S.Paulo, chegou a dar explicações aos ianques sobre o funcionamento do Tribunal de Contas da União.

Outro assunto que veio à tona com documentos revelados pelo WikiLeaks são os interesses do imperialismo ianque no estado brasileiro do Piauí.

Um documento datado de 2 de fevereiro de 2010 mostra que representantes do USA participaram de uma conferência organizada pelo governador do Piauí, Wellington Dias (PT), na capital Teresina, a fim de requisitar a implementação de obras de infra-estrutura que poderiam favorecer a exploração pelos monopólios ianques das imensas riquezas em matérias-primas do segundo estado mais pobre do Nordeste.

A representante do WikiLeaks no Brasil, a jornalista Natália Viana, adiantou que a organização divulgará em breve milhares de documentos inéditos da diplomacia ianque sobre o Brasil produzidos durante o gerenciamento Lula, incluindo alguns que desnudam a estreita relação do USA com o treinamento do aparato repressivo do velho Estado brasileiro. A ver. 

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Drogas em Portugal: a descriminalização funciona?



Por Maia Szalavitz, da Revista Time


Qual é o país europeu que possui a legislação mais liberal sobre o uso de drogas? (Dica: Não é a Holanda). Embora a sua capital seja notória entre os usuários de maconha e estudantes de faculdade, principalmente pelos “cafés” onde o uso é permitido, de fato a Holanda nunca legalizou as drogas - os holandeses simplesmente não aplicam as suas leis contra os “cafés”.

A resposta certa é Portugal, que em 2001 foi o primeiro país europeu a abolir oficialmente todas as penas criminais para posse de drogas, incluindo maconha, cocaína, heroína e metanfetaminas. 

Por recomendação de uma comissão nacional encarregada de resolver problemas relativos às drogas em Portugal, a prisão dos antigos infratores foi substituída com a oferta de terapia. O argumento era o medo de viciados em unidades prisionais no subsolo, além de que a prisão é mais cara do que o tratamento - por que não, então, em vez de prisão, prestar serviços de saúde aos dependentes químicos? Nos termos do novo regime de Portugal, pessoas acusadas de posse de pequenas quantidades de drogas são enviadas para um júri composto de um psicólogo, assistente social e conselheiro legal para o tratamento adequado (que pode ser recusado, sem punição penal), em vez de prisão.

A questão é, essa nova política funciona? Na época, os críticos da nova política eram os mais pobres, socialmente conservadores em uma nação majoritariamente católica. Eles diziam que descriminalizar o porte de drogas seria abrir o país para o “narco-turismo”, agravando problemas de drogas no país. Portugal teve alguns dos mais altos níveis de uso de drogas pesadas na Europa. Mas, recentemente divulgou os resultados de um relatório encomendado pelo Instituto Cato, que sugere o contrário.

O documento, publicado pelo Cato em abril, revelou que nos cinco anos após o porte de drogas ser descriminalizado, o uso de drogas ilícitas entre os adolescentes em Portugal diminuiu, e as taxas de novas infecções por HIV causada por compartilhamento de seringas contaminadas caíram, enquanto o número de pessoas que procuram tratamento para dependência química mais do que duplicou.

"A julgar pelos números, a descriminalização das drogas em Portugal tem sido um sucesso retumbante", diz Glenn Greenwald, advogado, escritor e orador fluente Português, que conduziu a pesquisa. "Isso permitiu que o governo Português gerisse e controlasse o problema das drogas muito melhor do que praticamente qualquer outro país ocidental”.

Em comparação com a União Europeia e os EUA, os números de Portugal para o uso de drogas são impressionantes. Na sequência da descriminalização, Portugal teve a menor taxa de uso de maconha durante a vida em pessoas com mais de 15 anos (considerando a na UE): 10%. O cenário mais próximo disso nos Estados Unidos é em pessoas acima de 12 anos: 39,8%. Proporcionalmente, mais norte-americanos usaram cocaína durante a vida do que Português usaram maconha.

O relatório do Cato informa que entre 2001 e 2006, as taxas de uso durante a vida de qualquer droga ilegal entre os alunos do sétimo ao nono ano caiu de 14,1% para 10,6%; Já o uso de drogas em adolescentes mais velhos também diminuiu. O consumo de heroína entre 16 a 18 anos de idade caiu de 2,5% para 1,8% (embora tenha havido um ligeiro aumento no consumo de maconha nesta faixa etária). Novas infecções pelo HIV em usuários de drogas caíram 17% entre 1999 e 2003, e as mortes relacionadas com a heroína e drogas similares caíram pela metade. Além disso, o número de pessoas em tratamento com metadona e buprenorfina para dependência de drogas subiu de 6.040 para 14.877. Após a descriminalização, o dinheiro economizado com as sanções aos usuários permitiu aumentar o financiamento do tratamento livre de drogas.

O estudo de caso em Portugal já desperta interesse aos parlamentares dos EUA, confrontado agora com uma escalada violenta da guerra do narcotráfico no México. Os EUA há muito tempo defendem uma política linha-dura de drogas, apoiando apenas os acordos internacionais que impõem a proibição das drogas e impõe aos seus cidadãos, alguns dos mais duras sanções do mundo por posse e venda de drogas. Apesar da política repressiva, os Estados unidos possuem as taxas mais elevadas de uso de cocaína e maconha no mundo. Enquanto isso, a maioria da UE (incluindo a Holanda) possui uma legislação mais liberal, atingindo menores índices de uso de drogas.

"Eu penso que nós podemos aprender [ com a experiência portuguesa] e que deveríamos parar de ser reflexivamente oposição quando alguém realiza [a descriminalização]. Deveríamos levar a sério a hipótese de que esse esforço contra os usuários não terá muita influência sobre o consumo de drogas", diz Mark Kleiman, autor do livro ainda não publicado When Brute Force Fails: How to Have Less Crime and Less Punishment [Quando a força bruta falha, como ter menos crime e menos castigo, em tradução livre], e diretor do programa de análise política de drogas na UCLA. Kleiman não considera Portugal um modelo realista para os EUA devido às diferenças no tamanho e na cultura entre os dois países.

Mas há um movimento em andamento nos EUA, nas legislaturas do Estado de Nova York, Califórnia e Massachusetts, a reconsiderar a nossa legislação sobre as drogas excessivamente punitivas. Recentemente, os senadores Jim Webb e Arlen Specter propuseram que o Congresso crie uma comissão nacional, e não ao contrário de Portugal, para tratar da reforma política prisional e revisão sentencial da drogas. Como notou Webb, os EUA é o lar de 5% da população mundial, mas possui 25% dos prisioneiros de todo o mundo.

No início de abril, no Instituto Cato, Greenwald sustentou que um grande problema com o debate da política de drogas entre os americanos são as argumentações baseadas em "especulações e difusão do medo", ao invés de evidências empíricas sobre os efeitos das políticas mais brandas. Em Portugal, o efeito foi o de neutralizar os números que haviam transformado o problema das drogas em um problema de saúde pública, diz ele.

"O impacto na vida das famílias e da sociedade é muito inferior ao que era antes da descriminalização", diz João Castel-Branco Goulão, “czar das drogas” e presidente do Instituto da Droga e Dependência Químca, acrescentando que a polícia está agora em condições de focar suas ações no monitoramento de traficantes.

Peter Reuter, professor de criminologia e da política pública da Universidade de Maryland, como Kleiman, é cético. Ele admitiu em uma apresentação no Instituto Cato que "é justo dizer que a despenalização em Portugal alcançou o seu objetivo central. O uso de drogas não sobe." No entanto, ele observa que Portugal é um país pequeno e que a natureza cíclica das epidemias de drogas - o que tende a ocorrer, não importa quais as políticas que estão em vigor - pode explicar a queda no consumo de heroína e as mortes.

O autor do relatório do Cato, Greenwald, corta para o primeiro ponto: que os dados mostram que a descriminalização não implica no aumento do consumo de drogas. Ele acredita que a preocupação do público e dos políticos com a política de descriminalização "é a concessão central que vai transformar o debate."

Leia o original (em inglês) em
http://www.time.com/time/health/article/0,8599,1893946,00.html
Tradução: Leonel Camasão (com ajuda do Google Chrome, é claro)

terça-feira, 26 de julho de 2011

Capitalismo mata



Se o capital puder dispensar milhares de trabalhadores e deixá-los na sarjeta, fará isso sem nenhum problema

26/07/2011

Vito Giannotti





A base do sistema capitalista é uma só: a exploração máxima dos trabalhadores e da natureza visando unicamente o lucro, ou seja, a multiplicação do capital nas mãos dos donos das empresas. O resto é conversa mole. Se o capital puder dispensar milhares de trabalhadores e deixá-los na sarjeta, fará isso sem nenhum problema. Uma empresa capitalista não é uma entidade filantrópica. Não tem nenhum objetivo social, humano, humanitário. Se puder acelerar o ritmo de trabalho até o extremo ela vai fazer. Quem morrer que morra. Há sempre milhões à espera de uma vaga.

Enquanto isso, iludidos ou enganadores falam de “responsabilidade social” das empresas. Outros fazem poesia com a tal “responsabilidade ambiental”. Balelas. Para qualquer capitalista não entra na contabilidade a saúde, a vida dos trabalhadores dentro ou fora da empresa.

A pesquisa da Confederação dos Nacional dos Trabalhadores nas Indústrias de Alimentação (CNTA), junto com a UFRGS vem comprovar isso. Você sabia que em frigoríficos de cortar frangos, os trabalhadores têm que fazer até 90 cortes por minuto?

Vejam alguns dados da pesquisa.

A “vida útil” dos escravos que viviam na época de Zumbi dos Palmares (1655-1695) e trabalhavam nas lavouras de cana era de 20 anos. Hoje, os trabalhadores dos frigoríficos do Rio Grande do Sul têm uma “vida útil” em média é de apenas mais cinco anos.

O estudo mostra que 77,5% dos trabalhadores da indústria da carne sofrem de alguma doença relacionada ao trabalho. 96% precisam tomar medicação para suportar a dor. Mais: 99,5% dos 640 trabalhadores entrevistados dos frigoríficos de Capão do Leão, Bagé, São Gabriel e Alegrete são empregados de um mesmo grupo: o Marfrig, que se orgulha de ter 151 unidades espalhadas por 22 países.

É grande, sim, é verdade. Mas tão preocupado com a saúde e o bem estar de seus empregados, quanto os donos de escravos de séculos atrás. Prova disso é que 78% dos seus trabalhadores admitem sofrer dores constantes no corpo, principalmente nos ombros, braços, costas, pescoços e pulsos, causadas pelo esforço repetido feito por horas e horas, sem qualquer interrupção e em condições insalubres de frio externo e umidade intensa.

Os principais efeitos disso se revelam fora do ambiente de trabalho, quando as mãos ficam dormentes, os braços tremem e a dor aparece ao se fazer coisas simples como abotoar a camisa ou escovar os dentes. A pesquisa revelou que ao final de um dia de trabalho 43,9% sentem um “cansaço insuportável” que afeta o sono, causa depressão e prejudica a convivência familiar.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Vergonha do Sete - O Globo - 09/04/2011

Cristovam Buarque


No século XIX, Victor Hugo se negou a apertar a mão de D. Pedro II, porque era o Imperador de um país que convivia naturalmente com a escravidão. Hoje, Victor Hugo não apertaria a mão de um brasileiro para parabenizá-lo pela conquista da 7ª posição entre as potências econômicas mundiais, convivendo com total naturalidade com a tragédia social ao redor.

Estamos à frente de todos os países do mundo, menos seis deles, no valor da nossa produção, mas não nos preocupamos por estarmos, segundo a Unesco, em 88º lugar em educação.

Somos o sétimo no valor do PIB, mas ignoramos que, segundo o FMI, somos o 55º país no valor de renda per capita, fazendo com que sejamos uma potência habitada por pobres. Mais grave: não vemos que, segundo o Banco Mundial, somos o 8º pior país do mundo em termos de concentração de renda, melhor apenas do que a Guatemala, Suazilândia, República Centro-Africana, Serra Leoa, Botsuana, Lesoto e Namíbia.

Somos a sétima economia do mundo, mas de acordo com a Transparência Internacional estamos em 69º lugar na ordem dos países com ética na política por causa da corrupção. A nota ideal é 10, o Brasil tem nota 3,7.

Somos a sétima potência em produção, mas, quando olhamos o perfil da produção, constatamos que há décadas exportamos quase o mesmo tipo de bens e continuamos importando os produtos modernos da ciência e da tecnologia. Somos um dos maiores produtores de automóveis e temos uma das maiores populações de flanelinhas fora da escola.

Um relatório da Unesco divulgado em março mostra que a maioria dos adultos analfabetos vive em apenas dez países. O Brasil é um deles, com 14 milhões; com o agravante de que, no Brasil, eles nem ao menos reconhecem a própria bandeira. De 1889 até hoje, chegamos à sétima posição mundial na economia, mas temos quase três vezes mais brasileiros adultos iletrados, do que tínhamos naquele ano; além de 30 a 40 milhões de analfabetos funcionais.

Somos a sétima economia e não temos um único prêmio Nobel.

Segundo um estudo da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), que pesquisou 46 países, o Brasil fica em último lugar em percentagem de jovens terminando o ensino médio. Estamos ainda piores quando levamos em conta a qualificação necessária para enfrentar os desafios do século XXI. Segundo a OIT, a remuneração de nossos professores está atrás de países como México, Portugal, Itália, Polônia, Lituânia, Látvia, Filipinas; a formação e a dedicação deles provavelmente em posição ainda mais desfavorável, por causa da péssima qualidade das escolas onde são obrigados a lecionar. Somos a 7ª potência econômica, mas a permanência de nossas crianças na escola, em horas por dia, dias por ano e anos por vida está entre as piores de todo o mundo. Além de que temos, certamente, a maior desigualdade na formação de cada pessoa, conforme a renda de seus pais. Os brasileiros dos 10% mais ricos recebem investimento educacional cerca de 20 vezes maior do que os 10% mais pobres.

Somos a sétima potência, mas temos doenças como a dengue, a malária, a doença de chagas e leishmaniose. Temos 22% de nossa população sem água encanada e mais da metade sem serviço de saneamento. Segundo o IBGE, 43% dos domicílios brasileiros, 25 milhões, não são considerados adequados para moradia; não têm simultaneamente abastecimento de água, esgotamento sanitário e coleta de lixo.

Esta dicotomia entre uma das economias mais ricas do mundo e um mundo social entre os mais pobres, só se explica porque nosso projeto de nação é sem lógica, sem previsão e sem ética. Sem lógica, porque não percebemos que "país rico é país sem pobreza", como diz a presidenta Dilma. Sem previsão, por não percebermos a grande, mas atrasada economia que temos, incapaz de seguir em frente na concorrência com a economia do conhecimento que está implantada em países com menor riqueza e mais futuro. E sem ética, porque comemoramos a posição na economia esquecendo as vergonhas que temos no social.


Cristovam Buarque é Professor da UnB e Senador pelo PDT-DF

terça-feira, 5 de julho de 2011

István Mészaros - O Capital além do capitalismo

Entrevista de István Mészaros no OPOVO online

Polêmico e radical pensador marxista explica por que nenhuma das experiências socialistas até hoje podem ser consideradas fieis ao pensamento de Karl Marx.

A perspectiva política adquire ares proféticos, quase messiânicos. O socialismo é o destino inescapável da humanidade. É o futuro inexorável. Será ele ou a barbárie, como disse Rosa Luxemburgo. Isso na melhor das hipóteses, acredita István Mészaros. Pois a crise do Capital é tão grave que periga não deixar nem a barbárie.

Um dos mais radicais pensadores do marxismo atual, Mészaros virou trabalhador de fábrica aos 12 anos de idade. Metalúrgico, como o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva - lembrou ele durante a entrevista. Mais tarde, tornou-se intelectual, com estudos voltados para a exploração da classe trabalhadora.
Foi menino-operário nos anos em que a Segunda Guerra Mundial varreu a Europa. Já formulador marxista, criticou o socialismo na Hungria, sua terra natal. A ponto de fugir do País em 1956, quando se deu a invasão soviética. Mesmo no exílio, continuou a se corresponder com Georg Lukács, de quem foi discípulo.
Nas três últimas semanas, Mészaros percorreu as cidades brasileiras de São Paulo, Salvador, Fortaleza e Rio de Janeiro. Na passagem pela capital cearense, ele concedeu a entrevista ao O POVO que você confere a seguir.
O POVO – De que forma sua experiência como operário de fábrica, ainda muito jovem, influenciou seu pensamento e pensamento marxista?
István Mészaros – Eu tinha 12 anos e meio. Muito jovem ainda comecei a trabalhar numa fábrica, como metalúrgico. Coincidentemente, a mesma atuação do ex-presidente de vocês, Lula. Obviamente isso influenciou bastante. Porque, primeiro, a vida de um trabalhador era muito difícil naquele ano. E, também, era no meio da guerra (Segunda Guerra Mundial, 1939-45). Tinha a dificuldade de ser trabalhador de fábrica, operário, e estar no meio de uma guerra mundial.
OP – Como se deu o contato inicial com o pensamento marxista?
Mészaros – Nos idos de 1946, eu descobri, em uma livraria, um livro de Georg Lukács (1885-1971). Ele era um filósofo húngaro que escreveu um livro sobre os problemas da literatura húngara. Como eu estava também me iniciando nos estudos da literatura húngara, tinha alguma familiaridade com a coisa. Vi o livro, passei a ler e gostei. Uma coisa foi levando à outra. O Lukács era professor da universidade, da área de estética e literatura. E fui me aprofundando cada vez mais.
OP – Como foi a convivência posterior com o Lukács?
Mészaros – O Lukács foi meu padrinho de casamento. Eu tive a honra de trabalhar com ele durante sete anos e meio, quase oito anos, como assessor dele na Universidade (de Budapeste). Em 1956, fui nomeado professor assistente do Lukács. Eu ministrei o curso de Estética, que ele normalmente ensinava na universidade, substituindo-o no cargo. Logo depois disso, tudo explodiu. Você lembra do que aconteceu em 1956 na Hungria. Com a revolução, Lukács foi preso. Depois ficou lá, mantido sob ameaça de deportação. Eu tive de sair da Hungria. Fui para a Itália, depois para o Reino Unido, Inglaterra e Escócia especialmente. Ensinei em algumas universidades. Mas sempre mantive o contato com o Lukács. Durante 15 anos, nós nos correspondíamos normalmente, mesmo depois que ele foi liberado e ficou em prisão domiciliar. De 1956 a 1971 nós nos correspondemos. Em 1971, Lukács veio a falecer. Quando eu morrer, as cartas poderão ser publicadas. Até lá, não. Lukács foi muito perseguido, principalmente por ter relações de amizade muito próximas, de correspondência, com pessoas da parte ocidental. Como eu, que morava em países da Europa Ocidental. E lá, na Hungria, o dogmatismo era muito grande. Então, ele sofreu muita pressão, foi muito perseguido por esse tipo de amizade com pessoas do Ocidente.
OP – Como um garoto, que começou a trabalhar tão cedo, no ambiente fabril, conseguiu se educar a ponto de enveredar pelo ramo intelectual?
Mészaros – O intelectual é um trabalhador. Eu era um trabalhador de fábrica e passei a ser um trabalhador intelectual. Nós somos todos trabalhadores. A minha passagem para a academia foi natural. Na Hungria, existe o equivalente ao que há na França, a Escola Superior Normal. Com base no meu rendimento escolar, fui aceito e comecei a estudar, voltado para a área de estética. Imediatamente depois, nos idos de 1950, eu escrevi ensaio, publicado em um dos principais jornais literários na Hungria, sobre o poeta húngaro Attila József, um gigante da literatura. Esse ensaio me rendeu um prêmio, com o nome desse poeta. O que me deixou muito feliz foi o fato de que esse poeta havia sido banido de apresentações do Teatro Nacional da Hungria. Depois desse ensaio, como desdobramento, a obra voltou a ser realizada e voltou a ser apresentada no Teatro Nacional. E deu ainda mais ânimo para continuar na vida acadêmica.
OP – Como foi sua experiência, como pensador marxista, com o socialismo húngaro, antes e depois da invasão soviética de 1956.
Mészaros – Sempre fui muito crítico ao processo, da forma como se deu. Acreditava que a Hungria não era mais um país autônomo. Tinha perdido sua autonomia, porque dependia exclusivamente das relações com Moscou. Tudo que era trabalhado nessa relação de dependência com Moscou acabava refletindo negativamente para o País. Então, bati de frente. Escrevi artigo extremamente crítico, publicado em 1956, mas escrito muito antes disso. Inclusive seis meses da crítica que o (Nikita) Kruschev (sucessor de Josef Stalin como secretário-geral do Partido Comunista Soviético) fez ao Stalin (em fevereiro de 1956). Fui sempre crítico veemente da forma como as coisas aconteceram na Hungria.
OP – Quando houve a invasão soviética, como foi tomada a decisão de deixar o País?
Mészaros – Deixei o País porque não acreditava que aquilo era, de fato, socialismo. Sempre deixei isso muito claro em todos os meus escritos. Nunca titubeei a esse respeito. Sempre tive posição muito crítica ao modelo soviético. Voltando ao pensamento marxista, aquilo não tinha quase nada a ver com socialismo. Então, minha opção foi por deixar o País.
OP – Das experiências do chamado socialismo real que já tivemos, o que mais se aproxima daquilo que Marx concebeu?
Mészaros – É uma pergunta muito difícil de ser respondida. Os diferentes países enfrentaram diferentes limites. Limitações claras e específicas das suas próprias realidades. Você vê alguma sombrazinha, aqui e acolá, de coisas positivas que foram feitas em experiências dos países do chamado bloco socialista, até agora. Mas nenhuma dessas experiências pode ser considerada como, de fato, experiência de socialismo, no sentido marxista do termo. O que é o sentido marxista do termo? Uma concepção radical da emancipação da humanidade. No sentido de que isso vai ser feito com a igualdade substancial. A igualdade que temos hoje passa longe de ser essa igualdade substantiva. É uma igualdade formal. Você pode votar. Você pode, “democraticamente”, eleger seus representantes. A partir disso, essas pessoas são colocadas nas suas assembleias, nos seus parlamentos, e nós não temos mais absolutamente nenhum controle sobre as suas ações. De quatro em quatro anos, ou de cinco em cinco anos, nós vamos lá e colocamos um pedaço de papel na urna e estamos exercendo nossa igualdade formal. Entretanto, isso não tem nada a ver com socialismo, na concepção marxista original. O socialismo é algo que acontecerá no futuro. Não há alternativa a isso. É a ideia de que as pessoas irão, radicalmente, humanamente se emancipar nessa igualdade substancial. Um exemplo é o que diz o escritor norte-americano Gore Vidal, que entende o sistema americano como sendo o modelo democrático de um partido só dividido em duas frentes de direita. Existe tendência muito grande ao maniqueismo na compreensão histórica. Preto ou branco, um lado ou outro lado. E a compreensão histórica não é isso. Você tem sombras em todas as partes, sombras de problemas, sombras que não são pretas nem brancas. Sombras que são cinzas e sombras que são múltiplas. O processo histórico vai se materializar através da interação de todas essas sombras.
OP – Mas, depois de tantas experiências que se proclamaram marxistas ao longo da história, mas não conseguiram alcançar a plenitude socialista, ainda assim o senhor tem a convicção de que é possível e, mais que isso, inescapável que se alcance esse estágio de socialismo?
Mészaros – Com certeza. Acredito que o socialismo é, sim, o nosso futuro. Porque o sistema que nós temos hoje, o sistema capitalista está, de fato, destruindo a humanidade, destruindo a natureza, destruindo os recursos naturais. Porque se baseia no crescimento a todo custo e a todo preço. A lógica do sistema é crescer. Crescer, crescer, crescer. Produzir, produzir, produzir e vender. A lógica do sistema capitalista é essa. Independentemente do que você vá fazer com seu produto, o importante é vender e fazer com que a mercadoria se realize na forma do Capital. Feito isso, não tem diferença qual vai ser o destino que vai ser dado a esse produto. Você pode simplesmente comprar o produto e jogar no mar. O destino não interessa. Porque a lógica do sistema capitalista é essa. E essa lógica é que tem causado toda essa destruição que nós testemunhamos com muita clareza no mundo todo. Por isso nós tivemos duas guerras mundiais. E só não tivemos uma Terceira Guerra Mundial sob o capitalismo porque iria destruir toda a vida no planeta. Há uma frase de Rosa Luxemburgo que diz: “Socialismo ou barbárie”. Se eu pudesse fazer uma modificação nessa frase, a única coisa que eu mudaria seria acrescentar: “Socialismo ou barbárie, se nós tivermos sorte”. Porque o capitalismo vai destruir tudo e não sobra nem a barbárie. Em 1992, tivemos no Rio de Janeiro a Eco-92. O (George) Bush, pai (então presidente dos Estados Unidos) esteve presente e foram feitas promessas, e promessas e promessas. E absolutamente nada do que foi acordado naquela conferência ecológica mundial foi colocado em prática. Agora, vamos ter a Rio+20. Se a gente não tomar cuidado, o que vai acontecer é basicamente a mesma coisa. Promessas, promessas e promessas. Para juntar àquelas outras promessas que já haviam sido feitas há 20 anos. E nada vai acontecer para inverter essa lógica. E nós não temos mais tempo para ficar, de 20 em 20 anos, renovando as nossas promessas.
OP – Na sua obra, o senhor descreve uma crise estrutural, que não está sendo revertida pelos mecanismos do capitalismo. Mas, ao longo das várias crises pelas quais o sistema passou desde o século XX, ele não mostrou capacidade de adaptação e de resistência muito maior que se supunha no marxismo clássico?
Mészaros – Eu não estou falando sobre a crise do capitalismo. Estou falando sobre a crise estrutural do sistema do Capital. O capitalismo tem 400, 500 anos. O Capital existe há mais de dois mil anos. O capitalismo sobreviveu a todas essas crises superando os obstáculos que apareciam de forma cíclica. O capitalismo, de fato, é essa produção de commodities generalizada. Mas nós temos o capitalismo porque o Capital se impôs, com sua força, seu poder econômico. E foi se formando, então, o capitalismo. A crise que eu estou descrevendo não é a crise do sistema capitalista. É a crise do Capital, que se impôs de maneira a formar o que hoje se entende por capitalismo. Essas crises do capitalismo, sejam cíclicas ou conjunturais, repetem-se a cada sete ou dez anos. E o capitalismo consegue superá-las. Mas elas não são resolvidas em definitivo. E se está chegando ao ponto no qual não se pode prosseguir destruindo. Nos primeiros anos do capitalismo, pela sua força e seu poder, o capitalismo se expandia num ritmo alucinado. Há um ditado em muitas línguas que diz que o céu é o limite. Mas, depois de tantos séculos de capitalismo e de destruição, vê-se com muita clareza que o céu não é o limite. A Terra é o limite. A Mãe-Terra. E isso vai não só contra os princípios básicos do capitalismo, mas também do Capital. Essa ideia do capitalismo, de competição, de criar o inimigo. Se você não puder bater o seu inimigo pelas pressões comerciais, pela competição comercial, você acabará tendo que combatê-lo na extensão da política, que é a guerra. Perguntado sobre o que era a guerra, Carl von Clausewitz (general, estrategista e teórico militar da antiga Prússia, atual Alemanha) dizia: “A guerra é a continuação da diplomacia e da política através de outros meios”. Por isso tivemos duas guerras mundiais sob a égide do capitalismo. Mas não podemos mais ter a continuação da política por outros meios.

A entrevista foi mediada pelo tradutor Nícolas Ayres.

István Mészaros - O Capital além do capitalismo

terça-feira, 21 de junho de 2011

Música inédita do RADIOHEAD...escuta aí que os caras são geniais. Aumenta o som!!

Puta que pariu, esses caras são foda...

''A ecologia é o ópio do povo''. Entrevistas com Slavoj Zizek

Esta entrevista foi realizada pelo professor Ricardo Sanín, do Departamento de Filosofia e História do Direito da Universidade Javeriana, da Colômbia, sendo cedida a MAGIS por intermédio do professor dos PPGs em Filosofia e Direito da Unisinos, Alfredo Culleton.Sanin e Culleton (também responsável pela tradução e introdução da entrevista) trabalham em cooperação em projeto de desenvolvimento de uma Teoria Crítica dos Direitos Humanos, junto com o professor Costas Douzinas, da Universidade de Londres.

A entrevista foi publicada por Magis, Revista da Unisinos, no. 05, dez 2009-jan 2010.

Eis a entrevista.



O senhor tem insistido que tanto o multiculturalismo quanto os movimentos ecológicos não abordam os problemas políticos verdadeiramente agudos e relevantes para o mundo. Por quê?

O multiculturalismo passa por cima dos problemas políticos verdadeiramente relevantes e agudos quando os reduz a meros problemas culturais. Quando lidamos com um problema real, tanto sua designação ideológica como sua percepção como tal introduz uma mistificação invisível. Digamos que a tolerância designa um problema real. É claro, sempre me perguntam: “Como você pode concordar com a intolerância com os estrangeiros, estar de acordo com o antifeminismo ou ao lado da homofobia?”. Aí reside a armadilha. Evidentemente, não estou de acordo. Ao que me oponho é à nossa percepção automática do racismo como mero problema de tolerância. Por que tantos problemas atualmente são percebidos como problemas de intolerância, em vez de serem entendidos como problemas de iniquidade, exploração e injustiça? Por que o remédio tem de ser a tolerância em vez de a emancipação, a luta política, ou ainda a luta política armada? A resposta imediata está na operação básica do multiculturalismo liberal: “a culturização da política”. As diferenças políticas, diferenças condicionadas pela iniquidade política ou a exploração econômica, se naturalizam como simples diferenças “culturais”. A causa desta culturização é o retrocesso, o fracasso das soluções políticas diretas, tais como o estado social. A tolerância é seu ersatz ou sucedâneo pós-político. A ideologia é, neste preciso sentido, uma noção que, enquanto designa um problema real, dilui uma fronteira de separação crucial.


E quanto à ecologia?

É precisamente no terreno da ecologia que podemos delinear a demarcação entre a política da emancipação e a política do medo na sua forma mais pura. De longe, a versão predominante da ecologia é a da ecologia do medo – medo da catástrofe, humana ou natural, que pode perturbar profundamente ou mesmo destruir a civilização humana. Essa ecologia do medo tem todas as oportunidades de se converter na forma ideológica predominante do capitalismo global, um novo ópio das massas que sucede o da religião. Assume a função fundamental da religião, aquela de impor uma autoridade inquestionável que estabelece todo limite. Apesar de os ecologistas exigirem permanentemente que mudemos radicalmente nossa forma de vida, é precisamente isso que subjaz a essa exigência no seu oposto, isto é, uma profunda desconfiança em relação à mudança, em relação ao desenvolvimento, em relação ao progresso: cada transformação radical pode conter a consequência inestimada de detonar uma catástrofe. É exatamente essa desconfiança que converte a ecologia em um candidato ideal para tomar o lugar de uma ideologia hegemônica, pois faz eco da desconfiança em relação aos grandes atos coletivos.


Afinal, de qual natureza estamos falando?

A “natureza” como condição de domínio, de reprodução balanceada, de implantação orgânica dentro da qual intervém a humanidade com a sua desmedida, destruindo brutalmente sua moção circular, não é outra coisa que a fantasia do ser humano; a natureza já é de fato uma “segunda natureza”, seu equilíbrio é sempre secundário, trata-se de uma tentativa de negociar um “hábito” que restauraria alguma ordem depois das intervenções catastróficas. A lição que devemos colher é a de que, se não podemos estar seguros de qual será o resultado final das intervenções humanas na biosfera, uma coisa é certa: se a humanidade detivesse abruptamente sua imensa atividade industrial e deixasse que a natureza tomasse seu curso equilibrado, o resultado seria uma ruptura total, uma catástrofe inimaginável. A “natureza” na Terra está tão adaptada às intervenções humanas, a “contaminação” humana está a tal ponto incluída no frágil e instável equilíbrio da reprodução “natural”, que a interrupção intempestiva da ação humana causaria um desequilíbrio catastrófico. É isso precisamente que demonstra que a humanidade não tem como retroceder: não só não há um “grande Outro” (uma ordem simbólica autocontida que seja a última garantia do significado), assim como também não existe uma natureza que contenha uma ordem equilibrada ou de autoprodução e cujo equilíbrio tenha sido perturbado e descarrilado pela intervenção humana desbalanceada. Não só o grande Outro tem sido “gradeado”, a natureza também.


Existe o mito fundamental segundo o qual o liberalismo é o lar da democracia. É a democracia uma produção do liberalismo?

Não, todas as características que hoje identificamos com a democracia liberal e com a liberdade (sindicatos, sufrágio universal, educação universal e gratuita, liberdade de imprensa etc.) foram obtidas pelas classes mais baixas em uma longa e difícil luta no transcurso do século XIX. Tais lutas estavam longe de ser uma consequencia “natural” das relações capitalistas. Lembra a lista de demandas que conclui o Manifesto Comunista: a maioria delas – à exceção da abolição da propriedade privada dos meios de produção, precisamente como resultado das lutas populares – hoje é amplamente aceita nas democracias “burguesas”. Outro aspecto que se ignora constantemente: hoje, a igualdade entre brancos e negros se celebra como parte do “sonho americano”, se percebe como um axioma ético-político. Sem dúvida, nos anos 1920 e 1930 do século passado, os comunistas dos Estados Unidos foram a única força política que argumentou a favor da igualdade absoluta entre as etnias. Aqueles que defendem a existência de um vínculo natural entre o liberalismo e a democracia estão equivocados.


Pode a política ser sublime em uma era pós-ideológica?

A tendência geral é para o ridículo. A figura do primeiro-ministro italiano, Silvio Berlusconi, é aqui fundamental, visto que hoje a Itália é efetivamente um tipo de laboratório experimental do nosso futuro. Se o cenário político é dividido entre um tecnocratismo permissivo-liberal e um fundamentalismo populista, Berlusconi tem o grande mérito de ser ambos ao mesmo tempo. É sem dúvida esta combinação que faz dele imbatível, pelo menos em um futuro próximo: a histórica “esquerda” italiana agora resignadamente o aceita como destino. Essa aceitação silenciosa de Berlusconi como destino é talvez o aspecto mais triste de seu reinado. Seus atos são cada vez mais inescrupulosos: ele não só ignora ou politicamente neutraliza juridicamente as investigações sobre suas atividades criminosas para impulsionar seus interesses comerciais privados, como também busca minar sistematicamente a base da dignidade do chefe de Estado. A dignidade clássica da política é baseada na sua elevação acima do jogo de interesses específicos na sociedade civil: a política é "alienada" da sociedade civil, apresenta-se como a esfera ideal do cidadão, em contraste com o conflito de interesses que caracteriza a burguesia como egotista. Berlusconi efetivamente acaba com essa alienação: hoje na Itália, a base burguesa impiedosa e abertamente explora o poder estatal como um meio para a defesa dos seus interesses econômicos. E lava a roupa suja de seus conflitos maritais privados à maneira de um reality show vulgar, diante de milhões de espectadores sentados nos seus sofás. A aposta de Berlusconi nas suas indecentes vulgaridades está, naturalmente, em que as pessoas vão se identificar com ele, na medida em que ele aprova a mítica imagem ampliada da mídia italiana: “Eu sou um de vocês, um pouco corrupto, com problemas com a lei, tenho problemas com a minha mulher, porque outras mulheres me atraem...” Mesmo sua grandiosa promulgação como um grande e nobre político, il cavalliere, é mais como uma ópera ridícula do pobre homem com sonho de grandeza. E, no entanto, essa aparência de "um homem normal como todos nós” não deve nos iludir: por baixo da máscara desajeitada há um poder estatal que funciona com eficiência impiedosa.
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Slavoj Zizek é um dos principais pensadores europeus atuais. E também extremamente controverso. O filósofo e sociólogo esloveno escreve sobre temas como Lenine, ciberespaço, pós-modernismo, pós-Marxismo ou Alfred Hitchcock. E diz que "detesta pessoas". Abaixo, uma entrevista com ele, concedida à Euronews.

Euronews: O senhor é convidado do Festival de Cinema de Sarajevo… qual é o papel dos filmes e do cinema na sociedade de hoje?

Slavoj Zizek: Primeiro, eu continuo a ser um marxista à moda antiga. Portanto, eu acho que o cinema é hoje um campo de batalha ideológica, alguma batalha decorre aí e até podemos ver isso claramente no que respeita à horrível Guerra dos Balcãs. Temos alguns filmes acerca disto que são autênticos, mas, infelizmente, os maiores sucessos não o são. Esse é o caso do “Underground” do Emir Kusturica. Eu acho que esse filme é quase uma trágica – eu não diria que é uma falsificação equívoca – no sentido em que: “Que imagem é que esse filme te dá da ex-Jugoslávia?” A de uma parte do mundo maluca, onde as pessoas fornicam, bebem e lutam todo o tempo. Ele exibe um certo mito que o Oeste gosta de ver aqui nos Balcãs: este mítico outro, que permanece durante um longo período.

Euronews: Como explica este fenómeno?

Slavoj Zizek: Pode dizer-se ironicamente que os Balcãs estão estruturados como o inconsciente da Europa. A Europa põe e projecta todos os seus segredos sujos, obscenidades e por aí fora nos Balcãs. É por isso que a minha fórmula para o que está a acontecer nos Balcãs não é como as pessoas usualmente dizem que são apanhadas nos seus velhos sonhos, que não podem enfrentar a realidade ordinária pós-moderna. Não, eu diria que elas são apanhadas nos sonhos, mas não nos seus sonhos – nos sonhos europeus. O filósofo francês Gilles Deleuze disse uma coisa maravilhosa: “Se fores apanhado nos sonhos dos outros, estás feito”. Portanto, o cinema deve mostrar precisamente que este folclore excêntrico em alguns lugares pode fazer parecer que somos todos parte de um mundo global.

Euronews: Sarajevo é também uma cidade simbólica para o multiculturalismo, mas tem uma opinião muito particular acerca da tolerância multicultural, não tem?

Slavoj Zizek: Eu acho que aqui já tivemos o suficiente desta ideologia multicultural, que para mim, pelo menos, é frequentemente um racismo invertido, designadamente quando as pessoas vêm cá. Normalmente, multiculturalistas diriam: “Oh, eu quero entender como tu és diferente”. Não, o que se deve entender fundamentalmente é que eles aqui não são diferentes – apenas coisas diferentes lhes aconteceram e para o tornar tolerável para nós, que gostaríamos de ter evitado a guerra, no Ocidente fizemos as pessoas diferentes. O que precisamos hoje em dia é de códigos de conduta, não de mais entendimento. Eu acho que nos deveríamos opor totalmente a esta chantagem liberal de que temos que nos entender uns aos outros. Não, o mundo é demasiado complexo, não podemos. Detesto pessoas. Não quero entender as pessoas. Quero ter um certo código em que eu não entendo o teu estilo de vida e tu não entendes o meu, mas podemos coexistir.

Euronews: Por que razão podemos sentir aqui, em Sarajevo, desilusão, após a detenção de Radovan Karadzic?

Slavoj Zizek: A verdadeira tragédia é, como alguns inteligentes políticos bósnios realçaram, que basicamente Karadzic teve sucesso. O seu programa foi que uma grande parte da Bósnia deveria ser reservada e etnicamente limpa para os sérvios. Foi isto que efectivamente aconteceu: a República Srpska é 51 por cento do território e tem menos 10 por cento dos outros, não sérvios. Portanto, a ironia é… isto é como César morreu, César ganhou… para isto é demasiado tarde. Esta é a hipocrisia: condena-se o homem, o projecto vingou.
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Slavoj Zizek, um sujeito incômodo

Em entrevista à Folha, por telefone, ele apontou sua metralhadora teórica na direção de assuntos como levantes populares, bullying e falsa liberdade.

Folha - No livro "Em Defesa das Causas Perdidas", o sr. defende a "hipótese comunista", uma alternativa ao capitalismo, e fala em ditadura do proletariado. Essa terminologia não gera resistência?
Slavoj Zizek - Quero deixar claro que o comunismo do século 20 está morto e que não sou um ingênuo que acredita num grande retorno do Partido Comunista. O stalinismo foi a materialização do horror. Defendo o uso desses termos porque qualquer conservador moderno de direita sai por aí dizendo que precisamos de mais solidariedade.
Por outro lado, são termos que se referem à memória coletiva da humanidade e remetem a momentos em que existiram explosões populares igualitárias verdadeiras. Não se trata de repetir o modelo fracassado, mas de preservar o momento em que foi possível ter a liberdade de pensar e agir segundo a ideia de que o capitalismo não é um fato dado.

Joao Wainer/Folhapress
O filósofo esloveno Slavoj Zizek durante visita à Folha, em 2003
O filósofo esloveno Slavoj Zizek durante visita à Folha, em 2003
Um de seus argumentos para defender o comunismo é a questão da propriedade intelectual. Por que diz que o conceito de conhecimento é comunista?
O conhecimento é naturalmente comunista, o que quer dizer que já inclui a ideia de algo feito para ser compartilhado. E isso não pode ser transformado numa "commodity" de mercado. Vamos pensar em apenas dois exemplos importantes: a propriedade do patrimônio biogenético e ecológico, incluindo aí todas as recentes descobertas científicas, o genoma etc.
Estamos falando do controle privado da nossa substância genética e do ambiente em que vivemos. O conhecimento é nossa substância simbólica e pertence a todos, não pode ser de grupos privados. Outro dia, um grupo de estudantes me pediu originais de um livro meu para "pirateá-lo" entre os colegas. Atendi imediatamente.
Em "Primeiro como Tragédia, Depois como Farsa", o sr. fala que a crise de 2008 foi um embuste que revelou novas formas de colonialismo. Que formas são essas?
A crise de 2008 foi uma farsa no sentido de que foi um reflexo esperado das medidas tomadas nos EUA em 2001 --redirecionar o foco das empresas de internet que estavam falindo para o mercado imobiliário. É claro que a bomba estourou, mas a novidade é que essa crise planejada afetou os países muito seletivamente.


O Brasil passou bem pela crise...
Lula entendeu algo muito importante, que a esmagadora maioria da esquerda mundial não entende: o capitalismo de hoje não é um sistema hegemônico. Está cheio de inconsistências e divisões internas. A crise de 2008 foi uma crise do capitalismo global, mas, ao mesmo tempo, nos mostrou que estamos entrando numa era multicêntrica. Antes, se as economias norte-americana e dos principais países europeus iam bem, tudo ia bem. Agora, as coisas mudaram.
Isso pode ser bom por um lado, pois podemos pensar que o imperialismo norte-americano não é mais tão poderoso. Mas também traz um novo perigo: já podemos falar da emergência do colonialismo econômico chinês. A China patrocina governos corruptos locais para poder explorar recursos minerais, por exemplo, e manter seu lugar de destaque no mercado.
Aqui, queria fazer um parêntese e uma crítica a Lula. Talvez para mostrar que o Brasil não é mais dependente dos EUA, ele apoiou Mahmoud Ahmadinejad quando as eleições foram contestadas no Irã. Para mim, foi um erro terrível.


A seu ver, Lula deveria ter apoiado o outro lado?
Sim! Mir Hossein Mousavi, o candidato que foi roubado nas eleições, não era mais um liberal pró-ocidental oportunista. Na verdade, representava a verdadeira alternativa democrática: veio da revolução liderada por Khomeini [levante islamista que derrubou a monarquia no Irã em 1979].
Mousavi estava no caminho dos levantes que começaram recentemente no Egito e na Tunísia, fenômenos nos quais tenho alguma esperança. Ninguém esperava isso: que exatamente nos países árabes tivéssemos movimentos democráticos emancipatórios desse tipo.


Por que países como a França e a Inglaterra ficaram tão reticentes quanto ao levante no Egito?
O discurso norte-americano e da Europa Ocidental foi sempre o seguinte: as intervenções nos paí¬ses árabes acontecem no sentido de evitar levantes fundamentalistas e estimular a liberdade, a luta pela democracia etc. Muito bem: é exatamente isso o que aconteceu no Egito, e eles não ficaram contentes, mudaram o discurso. Mas de fato há razões para que eles fiquem assustados.
O que está acontecendo no Egito não é simples. Não se trata apenas de um "queremos ser uma democracia liberal". As pessoas no Egito estão lutando por algo diferente, por algo novo.
O importante é o que acontece no que chamo de "o dia seguinte", ou seja, como as reivindicações são institucionalizadas em uma nova ordem.


E como lê a situação da Líbia?
O episódio Gaddafi não traz nada de novo. É a repetição da fórmula que inclui intervenção militar, envio de ajuda humanitária etc. Ou seja, é um episódio que pode ser lido dentro da lógica da guerra ao terror americana. A Líbia não vive nada realmente novo, ao contrário do Egito.


O sr. estabelece uma relação direta entre capitalismo e bullying. Por que esse último se transformou numa espécie de paranoia mundial?
O paradoxo é o seguinte: de um lado, temos a permissividade capitalista, e do outro, uma sociedade mais regulada do que nunca. Ou seja, em princípio, não há regras rígidas a serem seguidas, mas, ao mesmo tempo, tudo o que você disser ou fizer pode ser apontado como ofensa ou ameaça.
O cerne da questão trata do velho problema cristão de "amar o próximo". Cada vez mais, nosso próximo é percebido como ameaça em potencial. Isso tem ligação direta com a política do medo pós-11 de Setembro. Com a desculpa de proteger a população de possíveis novos atentados, os níveis de vigilância chegaram a patamares absurdos, liberdades foram cassadas e o clima de pânico, instaurado. A verdade é que, apesar de todo o discurso liberal, vivemos numa das sociedades mais controladas de todos os tempos.
Existe algo muito errado com essa subjetividade ultranarcisista que está surgindo desse cenário. Temos de falar de um exemplo muito importante: o ato sexual apaixonado está sendo abandonado. O último filme de "James Bond", por exemplo, "Quantum of Solace" (2008), é o primeiro da série em que não existe uma cena de sexo entre Bond e a "Bond girl". Em "O Código da Vinci" também não há sexo, embora o ato sexual exista nos romances que deram origem ao filme.
A indústria do cinema sempre teve o papel de acrescentar sexo aos roteiros para torná-los mais atraentes. Então, em que espécie de mundo estamos quando Hollywood precisa retirar o sexo dos filmes? Estamos falando de uma economia de relações baseada no medo.


O sr. tem batido muito na tecla da "farsa ecológica" alimentada pela culpa das elites. Não existe de fato uma ameaça ecológica?
Existem problemas graves, é óbvio, mas as soluções para eles não estão nas "ecobags" ou noutra idiotice desse tipo. Entre as classes média e alta, é chique dizer que você é "consciente", que recicla lixo e se preocupa com o ambiente. Isso é imbecilidade, me desculpe.
É praticamente uma superstição, algo que tira a sua culpa e faz você se sentir bem. Os ecologistas radicais são os maiores críticos desse tipo de ritual da elite, eles chamam isso de "lifestyle" ecologista e pesquisas provam que o impacto positivo desse tipo de atitude no cenário global é irrelevante.

Nos livros "Em Defesa..." e "A Visão em Paralaxe", o sr. aponta as favelas como foco potencial de ideias de organização revolucionárias. Não há também uma idealização dos favelados?
Sim, é claro. Não se trata de idealizar os pobres como vítimas boa¬zinhas. Meus amigos intelectuais do Rio queriam me levar num desses passeios turísticos pelas favelas cariocas, uma coisa horrível. O que penso é que nas favelas há a organização dos que foram ou ainda são excluídos pelo poder público. É claro, há o tráfico e as igrejas que suprem essa falta, mas isso pode mudar. As favelas não precisam de caridade, precisam de alianças.