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quarta-feira, 27 de julho de 2011

Drogas em Portugal: a descriminalização funciona?



Por Maia Szalavitz, da Revista Time


Qual é o país europeu que possui a legislação mais liberal sobre o uso de drogas? (Dica: Não é a Holanda). Embora a sua capital seja notória entre os usuários de maconha e estudantes de faculdade, principalmente pelos “cafés” onde o uso é permitido, de fato a Holanda nunca legalizou as drogas - os holandeses simplesmente não aplicam as suas leis contra os “cafés”.

A resposta certa é Portugal, que em 2001 foi o primeiro país europeu a abolir oficialmente todas as penas criminais para posse de drogas, incluindo maconha, cocaína, heroína e metanfetaminas. 

Por recomendação de uma comissão nacional encarregada de resolver problemas relativos às drogas em Portugal, a prisão dos antigos infratores foi substituída com a oferta de terapia. O argumento era o medo de viciados em unidades prisionais no subsolo, além de que a prisão é mais cara do que o tratamento - por que não, então, em vez de prisão, prestar serviços de saúde aos dependentes químicos? Nos termos do novo regime de Portugal, pessoas acusadas de posse de pequenas quantidades de drogas são enviadas para um júri composto de um psicólogo, assistente social e conselheiro legal para o tratamento adequado (que pode ser recusado, sem punição penal), em vez de prisão.

A questão é, essa nova política funciona? Na época, os críticos da nova política eram os mais pobres, socialmente conservadores em uma nação majoritariamente católica. Eles diziam que descriminalizar o porte de drogas seria abrir o país para o “narco-turismo”, agravando problemas de drogas no país. Portugal teve alguns dos mais altos níveis de uso de drogas pesadas na Europa. Mas, recentemente divulgou os resultados de um relatório encomendado pelo Instituto Cato, que sugere o contrário.

O documento, publicado pelo Cato em abril, revelou que nos cinco anos após o porte de drogas ser descriminalizado, o uso de drogas ilícitas entre os adolescentes em Portugal diminuiu, e as taxas de novas infecções por HIV causada por compartilhamento de seringas contaminadas caíram, enquanto o número de pessoas que procuram tratamento para dependência química mais do que duplicou.

"A julgar pelos números, a descriminalização das drogas em Portugal tem sido um sucesso retumbante", diz Glenn Greenwald, advogado, escritor e orador fluente Português, que conduziu a pesquisa. "Isso permitiu que o governo Português gerisse e controlasse o problema das drogas muito melhor do que praticamente qualquer outro país ocidental”.

Em comparação com a União Europeia e os EUA, os números de Portugal para o uso de drogas são impressionantes. Na sequência da descriminalização, Portugal teve a menor taxa de uso de maconha durante a vida em pessoas com mais de 15 anos (considerando a na UE): 10%. O cenário mais próximo disso nos Estados Unidos é em pessoas acima de 12 anos: 39,8%. Proporcionalmente, mais norte-americanos usaram cocaína durante a vida do que Português usaram maconha.

O relatório do Cato informa que entre 2001 e 2006, as taxas de uso durante a vida de qualquer droga ilegal entre os alunos do sétimo ao nono ano caiu de 14,1% para 10,6%; Já o uso de drogas em adolescentes mais velhos também diminuiu. O consumo de heroína entre 16 a 18 anos de idade caiu de 2,5% para 1,8% (embora tenha havido um ligeiro aumento no consumo de maconha nesta faixa etária). Novas infecções pelo HIV em usuários de drogas caíram 17% entre 1999 e 2003, e as mortes relacionadas com a heroína e drogas similares caíram pela metade. Além disso, o número de pessoas em tratamento com metadona e buprenorfina para dependência de drogas subiu de 6.040 para 14.877. Após a descriminalização, o dinheiro economizado com as sanções aos usuários permitiu aumentar o financiamento do tratamento livre de drogas.

O estudo de caso em Portugal já desperta interesse aos parlamentares dos EUA, confrontado agora com uma escalada violenta da guerra do narcotráfico no México. Os EUA há muito tempo defendem uma política linha-dura de drogas, apoiando apenas os acordos internacionais que impõem a proibição das drogas e impõe aos seus cidadãos, alguns dos mais duras sanções do mundo por posse e venda de drogas. Apesar da política repressiva, os Estados unidos possuem as taxas mais elevadas de uso de cocaína e maconha no mundo. Enquanto isso, a maioria da UE (incluindo a Holanda) possui uma legislação mais liberal, atingindo menores índices de uso de drogas.

"Eu penso que nós podemos aprender [ com a experiência portuguesa] e que deveríamos parar de ser reflexivamente oposição quando alguém realiza [a descriminalização]. Deveríamos levar a sério a hipótese de que esse esforço contra os usuários não terá muita influência sobre o consumo de drogas", diz Mark Kleiman, autor do livro ainda não publicado When Brute Force Fails: How to Have Less Crime and Less Punishment [Quando a força bruta falha, como ter menos crime e menos castigo, em tradução livre], e diretor do programa de análise política de drogas na UCLA. Kleiman não considera Portugal um modelo realista para os EUA devido às diferenças no tamanho e na cultura entre os dois países.

Mas há um movimento em andamento nos EUA, nas legislaturas do Estado de Nova York, Califórnia e Massachusetts, a reconsiderar a nossa legislação sobre as drogas excessivamente punitivas. Recentemente, os senadores Jim Webb e Arlen Specter propuseram que o Congresso crie uma comissão nacional, e não ao contrário de Portugal, para tratar da reforma política prisional e revisão sentencial da drogas. Como notou Webb, os EUA é o lar de 5% da população mundial, mas possui 25% dos prisioneiros de todo o mundo.

No início de abril, no Instituto Cato, Greenwald sustentou que um grande problema com o debate da política de drogas entre os americanos são as argumentações baseadas em "especulações e difusão do medo", ao invés de evidências empíricas sobre os efeitos das políticas mais brandas. Em Portugal, o efeito foi o de neutralizar os números que haviam transformado o problema das drogas em um problema de saúde pública, diz ele.

"O impacto na vida das famílias e da sociedade é muito inferior ao que era antes da descriminalização", diz João Castel-Branco Goulão, “czar das drogas” e presidente do Instituto da Droga e Dependência Químca, acrescentando que a polícia está agora em condições de focar suas ações no monitoramento de traficantes.

Peter Reuter, professor de criminologia e da política pública da Universidade de Maryland, como Kleiman, é cético. Ele admitiu em uma apresentação no Instituto Cato que "é justo dizer que a despenalização em Portugal alcançou o seu objetivo central. O uso de drogas não sobe." No entanto, ele observa que Portugal é um país pequeno e que a natureza cíclica das epidemias de drogas - o que tende a ocorrer, não importa quais as políticas que estão em vigor - pode explicar a queda no consumo de heroína e as mortes.

O autor do relatório do Cato, Greenwald, corta para o primeiro ponto: que os dados mostram que a descriminalização não implica no aumento do consumo de drogas. Ele acredita que a preocupação do público e dos políticos com a política de descriminalização "é a concessão central que vai transformar o debate."

Leia o original (em inglês) em
http://www.time.com/time/health/article/0,8599,1893946,00.html
Tradução: Leonel Camasão (com ajuda do Google Chrome, é claro)

terça-feira, 26 de julho de 2011

Capitalismo mata



Se o capital puder dispensar milhares de trabalhadores e deixá-los na sarjeta, fará isso sem nenhum problema

26/07/2011

Vito Giannotti





A base do sistema capitalista é uma só: a exploração máxima dos trabalhadores e da natureza visando unicamente o lucro, ou seja, a multiplicação do capital nas mãos dos donos das empresas. O resto é conversa mole. Se o capital puder dispensar milhares de trabalhadores e deixá-los na sarjeta, fará isso sem nenhum problema. Uma empresa capitalista não é uma entidade filantrópica. Não tem nenhum objetivo social, humano, humanitário. Se puder acelerar o ritmo de trabalho até o extremo ela vai fazer. Quem morrer que morra. Há sempre milhões à espera de uma vaga.

Enquanto isso, iludidos ou enganadores falam de “responsabilidade social” das empresas. Outros fazem poesia com a tal “responsabilidade ambiental”. Balelas. Para qualquer capitalista não entra na contabilidade a saúde, a vida dos trabalhadores dentro ou fora da empresa.

A pesquisa da Confederação dos Nacional dos Trabalhadores nas Indústrias de Alimentação (CNTA), junto com a UFRGS vem comprovar isso. Você sabia que em frigoríficos de cortar frangos, os trabalhadores têm que fazer até 90 cortes por minuto?

Vejam alguns dados da pesquisa.

A “vida útil” dos escravos que viviam na época de Zumbi dos Palmares (1655-1695) e trabalhavam nas lavouras de cana era de 20 anos. Hoje, os trabalhadores dos frigoríficos do Rio Grande do Sul têm uma “vida útil” em média é de apenas mais cinco anos.

O estudo mostra que 77,5% dos trabalhadores da indústria da carne sofrem de alguma doença relacionada ao trabalho. 96% precisam tomar medicação para suportar a dor. Mais: 99,5% dos 640 trabalhadores entrevistados dos frigoríficos de Capão do Leão, Bagé, São Gabriel e Alegrete são empregados de um mesmo grupo: o Marfrig, que se orgulha de ter 151 unidades espalhadas por 22 países.

É grande, sim, é verdade. Mas tão preocupado com a saúde e o bem estar de seus empregados, quanto os donos de escravos de séculos atrás. Prova disso é que 78% dos seus trabalhadores admitem sofrer dores constantes no corpo, principalmente nos ombros, braços, costas, pescoços e pulsos, causadas pelo esforço repetido feito por horas e horas, sem qualquer interrupção e em condições insalubres de frio externo e umidade intensa.

Os principais efeitos disso se revelam fora do ambiente de trabalho, quando as mãos ficam dormentes, os braços tremem e a dor aparece ao se fazer coisas simples como abotoar a camisa ou escovar os dentes. A pesquisa revelou que ao final de um dia de trabalho 43,9% sentem um “cansaço insuportável” que afeta o sono, causa depressão e prejudica a convivência familiar.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Vergonha do Sete - O Globo - 09/04/2011

Cristovam Buarque


No século XIX, Victor Hugo se negou a apertar a mão de D. Pedro II, porque era o Imperador de um país que convivia naturalmente com a escravidão. Hoje, Victor Hugo não apertaria a mão de um brasileiro para parabenizá-lo pela conquista da 7ª posição entre as potências econômicas mundiais, convivendo com total naturalidade com a tragédia social ao redor.

Estamos à frente de todos os países do mundo, menos seis deles, no valor da nossa produção, mas não nos preocupamos por estarmos, segundo a Unesco, em 88º lugar em educação.

Somos o sétimo no valor do PIB, mas ignoramos que, segundo o FMI, somos o 55º país no valor de renda per capita, fazendo com que sejamos uma potência habitada por pobres. Mais grave: não vemos que, segundo o Banco Mundial, somos o 8º pior país do mundo em termos de concentração de renda, melhor apenas do que a Guatemala, Suazilândia, República Centro-Africana, Serra Leoa, Botsuana, Lesoto e Namíbia.

Somos a sétima economia do mundo, mas de acordo com a Transparência Internacional estamos em 69º lugar na ordem dos países com ética na política por causa da corrupção. A nota ideal é 10, o Brasil tem nota 3,7.

Somos a sétima potência em produção, mas, quando olhamos o perfil da produção, constatamos que há décadas exportamos quase o mesmo tipo de bens e continuamos importando os produtos modernos da ciência e da tecnologia. Somos um dos maiores produtores de automóveis e temos uma das maiores populações de flanelinhas fora da escola.

Um relatório da Unesco divulgado em março mostra que a maioria dos adultos analfabetos vive em apenas dez países. O Brasil é um deles, com 14 milhões; com o agravante de que, no Brasil, eles nem ao menos reconhecem a própria bandeira. De 1889 até hoje, chegamos à sétima posição mundial na economia, mas temos quase três vezes mais brasileiros adultos iletrados, do que tínhamos naquele ano; além de 30 a 40 milhões de analfabetos funcionais.

Somos a sétima economia e não temos um único prêmio Nobel.

Segundo um estudo da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), que pesquisou 46 países, o Brasil fica em último lugar em percentagem de jovens terminando o ensino médio. Estamos ainda piores quando levamos em conta a qualificação necessária para enfrentar os desafios do século XXI. Segundo a OIT, a remuneração de nossos professores está atrás de países como México, Portugal, Itália, Polônia, Lituânia, Látvia, Filipinas; a formação e a dedicação deles provavelmente em posição ainda mais desfavorável, por causa da péssima qualidade das escolas onde são obrigados a lecionar. Somos a 7ª potência econômica, mas a permanência de nossas crianças na escola, em horas por dia, dias por ano e anos por vida está entre as piores de todo o mundo. Além de que temos, certamente, a maior desigualdade na formação de cada pessoa, conforme a renda de seus pais. Os brasileiros dos 10% mais ricos recebem investimento educacional cerca de 20 vezes maior do que os 10% mais pobres.

Somos a sétima potência, mas temos doenças como a dengue, a malária, a doença de chagas e leishmaniose. Temos 22% de nossa população sem água encanada e mais da metade sem serviço de saneamento. Segundo o IBGE, 43% dos domicílios brasileiros, 25 milhões, não são considerados adequados para moradia; não têm simultaneamente abastecimento de água, esgotamento sanitário e coleta de lixo.

Esta dicotomia entre uma das economias mais ricas do mundo e um mundo social entre os mais pobres, só se explica porque nosso projeto de nação é sem lógica, sem previsão e sem ética. Sem lógica, porque não percebemos que "país rico é país sem pobreza", como diz a presidenta Dilma. Sem previsão, por não percebermos a grande, mas atrasada economia que temos, incapaz de seguir em frente na concorrência com a economia do conhecimento que está implantada em países com menor riqueza e mais futuro. E sem ética, porque comemoramos a posição na economia esquecendo as vergonhas que temos no social.


Cristovam Buarque é Professor da UnB e Senador pelo PDT-DF

terça-feira, 5 de julho de 2011

István Mészaros - O Capital além do capitalismo

Entrevista de István Mészaros no OPOVO online

Polêmico e radical pensador marxista explica por que nenhuma das experiências socialistas até hoje podem ser consideradas fieis ao pensamento de Karl Marx.

A perspectiva política adquire ares proféticos, quase messiânicos. O socialismo é o destino inescapável da humanidade. É o futuro inexorável. Será ele ou a barbárie, como disse Rosa Luxemburgo. Isso na melhor das hipóteses, acredita István Mészaros. Pois a crise do Capital é tão grave que periga não deixar nem a barbárie.

Um dos mais radicais pensadores do marxismo atual, Mészaros virou trabalhador de fábrica aos 12 anos de idade. Metalúrgico, como o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva - lembrou ele durante a entrevista. Mais tarde, tornou-se intelectual, com estudos voltados para a exploração da classe trabalhadora.
Foi menino-operário nos anos em que a Segunda Guerra Mundial varreu a Europa. Já formulador marxista, criticou o socialismo na Hungria, sua terra natal. A ponto de fugir do País em 1956, quando se deu a invasão soviética. Mesmo no exílio, continuou a se corresponder com Georg Lukács, de quem foi discípulo.
Nas três últimas semanas, Mészaros percorreu as cidades brasileiras de São Paulo, Salvador, Fortaleza e Rio de Janeiro. Na passagem pela capital cearense, ele concedeu a entrevista ao O POVO que você confere a seguir.
O POVO – De que forma sua experiência como operário de fábrica, ainda muito jovem, influenciou seu pensamento e pensamento marxista?
István Mészaros – Eu tinha 12 anos e meio. Muito jovem ainda comecei a trabalhar numa fábrica, como metalúrgico. Coincidentemente, a mesma atuação do ex-presidente de vocês, Lula. Obviamente isso influenciou bastante. Porque, primeiro, a vida de um trabalhador era muito difícil naquele ano. E, também, era no meio da guerra (Segunda Guerra Mundial, 1939-45). Tinha a dificuldade de ser trabalhador de fábrica, operário, e estar no meio de uma guerra mundial.
OP – Como se deu o contato inicial com o pensamento marxista?
Mészaros – Nos idos de 1946, eu descobri, em uma livraria, um livro de Georg Lukács (1885-1971). Ele era um filósofo húngaro que escreveu um livro sobre os problemas da literatura húngara. Como eu estava também me iniciando nos estudos da literatura húngara, tinha alguma familiaridade com a coisa. Vi o livro, passei a ler e gostei. Uma coisa foi levando à outra. O Lukács era professor da universidade, da área de estética e literatura. E fui me aprofundando cada vez mais.
OP – Como foi a convivência posterior com o Lukács?
Mészaros – O Lukács foi meu padrinho de casamento. Eu tive a honra de trabalhar com ele durante sete anos e meio, quase oito anos, como assessor dele na Universidade (de Budapeste). Em 1956, fui nomeado professor assistente do Lukács. Eu ministrei o curso de Estética, que ele normalmente ensinava na universidade, substituindo-o no cargo. Logo depois disso, tudo explodiu. Você lembra do que aconteceu em 1956 na Hungria. Com a revolução, Lukács foi preso. Depois ficou lá, mantido sob ameaça de deportação. Eu tive de sair da Hungria. Fui para a Itália, depois para o Reino Unido, Inglaterra e Escócia especialmente. Ensinei em algumas universidades. Mas sempre mantive o contato com o Lukács. Durante 15 anos, nós nos correspondíamos normalmente, mesmo depois que ele foi liberado e ficou em prisão domiciliar. De 1956 a 1971 nós nos correspondemos. Em 1971, Lukács veio a falecer. Quando eu morrer, as cartas poderão ser publicadas. Até lá, não. Lukács foi muito perseguido, principalmente por ter relações de amizade muito próximas, de correspondência, com pessoas da parte ocidental. Como eu, que morava em países da Europa Ocidental. E lá, na Hungria, o dogmatismo era muito grande. Então, ele sofreu muita pressão, foi muito perseguido por esse tipo de amizade com pessoas do Ocidente.
OP – Como um garoto, que começou a trabalhar tão cedo, no ambiente fabril, conseguiu se educar a ponto de enveredar pelo ramo intelectual?
Mészaros – O intelectual é um trabalhador. Eu era um trabalhador de fábrica e passei a ser um trabalhador intelectual. Nós somos todos trabalhadores. A minha passagem para a academia foi natural. Na Hungria, existe o equivalente ao que há na França, a Escola Superior Normal. Com base no meu rendimento escolar, fui aceito e comecei a estudar, voltado para a área de estética. Imediatamente depois, nos idos de 1950, eu escrevi ensaio, publicado em um dos principais jornais literários na Hungria, sobre o poeta húngaro Attila József, um gigante da literatura. Esse ensaio me rendeu um prêmio, com o nome desse poeta. O que me deixou muito feliz foi o fato de que esse poeta havia sido banido de apresentações do Teatro Nacional da Hungria. Depois desse ensaio, como desdobramento, a obra voltou a ser realizada e voltou a ser apresentada no Teatro Nacional. E deu ainda mais ânimo para continuar na vida acadêmica.
OP – Como foi sua experiência, como pensador marxista, com o socialismo húngaro, antes e depois da invasão soviética de 1956.
Mészaros – Sempre fui muito crítico ao processo, da forma como se deu. Acreditava que a Hungria não era mais um país autônomo. Tinha perdido sua autonomia, porque dependia exclusivamente das relações com Moscou. Tudo que era trabalhado nessa relação de dependência com Moscou acabava refletindo negativamente para o País. Então, bati de frente. Escrevi artigo extremamente crítico, publicado em 1956, mas escrito muito antes disso. Inclusive seis meses da crítica que o (Nikita) Kruschev (sucessor de Josef Stalin como secretário-geral do Partido Comunista Soviético) fez ao Stalin (em fevereiro de 1956). Fui sempre crítico veemente da forma como as coisas aconteceram na Hungria.
OP – Quando houve a invasão soviética, como foi tomada a decisão de deixar o País?
Mészaros – Deixei o País porque não acreditava que aquilo era, de fato, socialismo. Sempre deixei isso muito claro em todos os meus escritos. Nunca titubeei a esse respeito. Sempre tive posição muito crítica ao modelo soviético. Voltando ao pensamento marxista, aquilo não tinha quase nada a ver com socialismo. Então, minha opção foi por deixar o País.
OP – Das experiências do chamado socialismo real que já tivemos, o que mais se aproxima daquilo que Marx concebeu?
Mészaros – É uma pergunta muito difícil de ser respondida. Os diferentes países enfrentaram diferentes limites. Limitações claras e específicas das suas próprias realidades. Você vê alguma sombrazinha, aqui e acolá, de coisas positivas que foram feitas em experiências dos países do chamado bloco socialista, até agora. Mas nenhuma dessas experiências pode ser considerada como, de fato, experiência de socialismo, no sentido marxista do termo. O que é o sentido marxista do termo? Uma concepção radical da emancipação da humanidade. No sentido de que isso vai ser feito com a igualdade substancial. A igualdade que temos hoje passa longe de ser essa igualdade substantiva. É uma igualdade formal. Você pode votar. Você pode, “democraticamente”, eleger seus representantes. A partir disso, essas pessoas são colocadas nas suas assembleias, nos seus parlamentos, e nós não temos mais absolutamente nenhum controle sobre as suas ações. De quatro em quatro anos, ou de cinco em cinco anos, nós vamos lá e colocamos um pedaço de papel na urna e estamos exercendo nossa igualdade formal. Entretanto, isso não tem nada a ver com socialismo, na concepção marxista original. O socialismo é algo que acontecerá no futuro. Não há alternativa a isso. É a ideia de que as pessoas irão, radicalmente, humanamente se emancipar nessa igualdade substancial. Um exemplo é o que diz o escritor norte-americano Gore Vidal, que entende o sistema americano como sendo o modelo democrático de um partido só dividido em duas frentes de direita. Existe tendência muito grande ao maniqueismo na compreensão histórica. Preto ou branco, um lado ou outro lado. E a compreensão histórica não é isso. Você tem sombras em todas as partes, sombras de problemas, sombras que não são pretas nem brancas. Sombras que são cinzas e sombras que são múltiplas. O processo histórico vai se materializar através da interação de todas essas sombras.
OP – Mas, depois de tantas experiências que se proclamaram marxistas ao longo da história, mas não conseguiram alcançar a plenitude socialista, ainda assim o senhor tem a convicção de que é possível e, mais que isso, inescapável que se alcance esse estágio de socialismo?
Mészaros – Com certeza. Acredito que o socialismo é, sim, o nosso futuro. Porque o sistema que nós temos hoje, o sistema capitalista está, de fato, destruindo a humanidade, destruindo a natureza, destruindo os recursos naturais. Porque se baseia no crescimento a todo custo e a todo preço. A lógica do sistema é crescer. Crescer, crescer, crescer. Produzir, produzir, produzir e vender. A lógica do sistema capitalista é essa. Independentemente do que você vá fazer com seu produto, o importante é vender e fazer com que a mercadoria se realize na forma do Capital. Feito isso, não tem diferença qual vai ser o destino que vai ser dado a esse produto. Você pode simplesmente comprar o produto e jogar no mar. O destino não interessa. Porque a lógica do sistema capitalista é essa. E essa lógica é que tem causado toda essa destruição que nós testemunhamos com muita clareza no mundo todo. Por isso nós tivemos duas guerras mundiais. E só não tivemos uma Terceira Guerra Mundial sob o capitalismo porque iria destruir toda a vida no planeta. Há uma frase de Rosa Luxemburgo que diz: “Socialismo ou barbárie”. Se eu pudesse fazer uma modificação nessa frase, a única coisa que eu mudaria seria acrescentar: “Socialismo ou barbárie, se nós tivermos sorte”. Porque o capitalismo vai destruir tudo e não sobra nem a barbárie. Em 1992, tivemos no Rio de Janeiro a Eco-92. O (George) Bush, pai (então presidente dos Estados Unidos) esteve presente e foram feitas promessas, e promessas e promessas. E absolutamente nada do que foi acordado naquela conferência ecológica mundial foi colocado em prática. Agora, vamos ter a Rio+20. Se a gente não tomar cuidado, o que vai acontecer é basicamente a mesma coisa. Promessas, promessas e promessas. Para juntar àquelas outras promessas que já haviam sido feitas há 20 anos. E nada vai acontecer para inverter essa lógica. E nós não temos mais tempo para ficar, de 20 em 20 anos, renovando as nossas promessas.
OP – Na sua obra, o senhor descreve uma crise estrutural, que não está sendo revertida pelos mecanismos do capitalismo. Mas, ao longo das várias crises pelas quais o sistema passou desde o século XX, ele não mostrou capacidade de adaptação e de resistência muito maior que se supunha no marxismo clássico?
Mészaros – Eu não estou falando sobre a crise do capitalismo. Estou falando sobre a crise estrutural do sistema do Capital. O capitalismo tem 400, 500 anos. O Capital existe há mais de dois mil anos. O capitalismo sobreviveu a todas essas crises superando os obstáculos que apareciam de forma cíclica. O capitalismo, de fato, é essa produção de commodities generalizada. Mas nós temos o capitalismo porque o Capital se impôs, com sua força, seu poder econômico. E foi se formando, então, o capitalismo. A crise que eu estou descrevendo não é a crise do sistema capitalista. É a crise do Capital, que se impôs de maneira a formar o que hoje se entende por capitalismo. Essas crises do capitalismo, sejam cíclicas ou conjunturais, repetem-se a cada sete ou dez anos. E o capitalismo consegue superá-las. Mas elas não são resolvidas em definitivo. E se está chegando ao ponto no qual não se pode prosseguir destruindo. Nos primeiros anos do capitalismo, pela sua força e seu poder, o capitalismo se expandia num ritmo alucinado. Há um ditado em muitas línguas que diz que o céu é o limite. Mas, depois de tantos séculos de capitalismo e de destruição, vê-se com muita clareza que o céu não é o limite. A Terra é o limite. A Mãe-Terra. E isso vai não só contra os princípios básicos do capitalismo, mas também do Capital. Essa ideia do capitalismo, de competição, de criar o inimigo. Se você não puder bater o seu inimigo pelas pressões comerciais, pela competição comercial, você acabará tendo que combatê-lo na extensão da política, que é a guerra. Perguntado sobre o que era a guerra, Carl von Clausewitz (general, estrategista e teórico militar da antiga Prússia, atual Alemanha) dizia: “A guerra é a continuação da diplomacia e da política através de outros meios”. Por isso tivemos duas guerras mundiais sob a égide do capitalismo. Mas não podemos mais ter a continuação da política por outros meios.

A entrevista foi mediada pelo tradutor Nícolas Ayres.

István Mészaros - O Capital além do capitalismo